A IA veio para ficar, crescer e se multiplicar

por Lucia Santaella

[Abstract]:

“Judging by its recent advances, there is little doubt that, sooner or later, AI should cover many of the competencies we have hitherto considered to be exclusive privileges of humans. It is not the recent advances in AI alone that can justify the above prognosis and justify even more the title of this brief article that advocates the growth and multiplication of AI. Where is the justification for the growth of AI, including the one that is capable of dealing with the usual criticism that hastily conceals, with the label of “technological determinism”, its prejudices against any advances in technology? In explaining why and how human intelligence grows, this article aims to provide answers to the postulation of the growth of artificial intelligence, conceived as an enhancement of human intelligence itself.”

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Não é preciso ser um especialista em Inteligência artificial (IA) ou conviver com especialistas para perceber que seus avanços, nos últimos anos, chegam a ser desconcertantes. Embora esteja na crista da onda tecnológica, que hoje poderíamos melhor chamar de tsunami tecnológico, a IA tem uma história cuja especificidade remonta a meados do século 20. Para os iniciantes e também para aqueles que, sem conseguir esconder seus preconceitos, pressupõem que se trata de moda passageira, há algumas volumosas obras que tratam da história da IA e dos principais tópicos que vêm sendo estudados e realizados empiricamente.

Muito visitado e citado é o livro de Russell e Novig (2010, cuja primeira edição remonta a 1994) que trata a IA sob o prisma do agente inteligente, com ênfase nos inputs, ou seja, nos estímulos perceptivos que esse agente recebe do ambiente, e nos outputs, quer dizer, nas ações por ele performatizadas nesse mesmo ambiente. Assim, a IA tem por tarefa representar as diferentes funções que mapeiam a sequência de perceptos que levam a ações, tais como “agentes reativos, planejadores em tempo real, sistemas teoréticos de decisões etc. (p. viii). O livro começa com as fundações da IA, caminha por seu desenvolvimento histórico, avança por um numeroso elenco de conceitos nela implicados, para terminar em questões filosóficas, inclusive éticas.

Um segundo livro indicado para aqueles que desejam começar a se inteirar do assunto, é The quest for artificial intelligence. A history of ideas and achievements, de Nilsson (2010), uma espécie de Bíblia sobre o desenvolvimento da IA década a década, de meados do século 20 até a data da publicação da obra.

A noção que o autor tem da IA é muito generosa, baseada em uma definição bem ampla da mente e da inteligência. Para ele, a inteligência é uma qualidade ou atributo que habilita uma entidade a funcionar apropriadamente e com alguma previsão no seu ambiente. A partir disso, são muitas as entidades que podem possuir a qualidade da inteligência: humanos, animais e algumas máquinas. Não é por acaso, portanto, que nossos celulares são chamados de telefones inteligentes, o que, de fato, são. Difícil negar.

Outra ideia bastante interessante do autor é que a inteligência se atualiza nessas variadas entidades em um continuum de gradações que vão das mais rudimentares às mais complexas. No extremo da complexidade, por enquanto, encontra-se o ser humano capaz de raciocinar, atingir seus objetivos, compreender e gerar linguagens, processar interpretativamente a chuva ininterrupta de perceptos que recebe, provar teoremas matemáticos, jogar games desafiantes, decodificar e sintetizar informações, criar arte e música e inventar histórias geradas na imaginação, tudo isso adaptado ao contexto ou ambiente em que age, inclusive capaz de prever dedutivamente algumas das consequências de suas ações, sem deixar de saber contornar a situação quando, por um motivo ou outro, a dedução falha.

Se levarmos em consideração as diferenciadas facetas implícitas na inteligência e tomarmos a ampla definição de IA, dada por Nilsson, como envolvendo todas as atividades voltadas para tornar as máquinas inteligentes, não é difícil perceber a enorme complexidade da agenda que a IA tem pela frente. Entretanto, a julgar por seus avanços recentes, restam poucas dúvidas acerca do fato de que, mais cedo ou mais tarde, a IA deverá abranger muitas das competências que até agora julgamos serem privilégios exclusivos dos humanos.

Não são os avanços recentes da IA apenas que podem justificar o prognóstico acima e justificar, mais ainda, o título deste breve artigo que preconiza o crescimento e multiplicação da IA. Onde se encontra a justificativa, inclusive aquela que seja capaz de fazer frente às costumeiras críticas que apressadamente ocultam, com o rótulo de “determinismo tecnológico”, seus preconceitos contra quaisquer avanços das tecnologias? Passemos à justificativa.

Como e por que a inteligência cresce

Trata-se de afirmação insofismável que o ser humano é um ser de linguagem. Cada vez mais, especialmente depois do desenvolvimento dos animal studies, trata-se de um truismo afirmar que outros animais também estão dotados de linguagem: formigas trabalham, abelhas dançam, raposas mentem, cachorros são leais e afetuosos etc. A primeira diferença em relação ao humano, entretanto, encontra-se no fato que, enquanto as linguagens dos animais são estáveis, a linguagem humana é evolutiva, transforma-se, adapta-se, cresce em complexidade. Deixemos essa primeira diferença para ser discutida mais à frente e passemos para a segunda diferença: o humano é o único animal que fala. Por que e como fala?

A fonte da fala está certamente no cérebro, mas a fala se articula por meio de um conjunto de orgãos instalados no próprio corpo: o aparelho fonador. Como o nome mesmo diz, “aparelho”, o que se tem aí é uma espécie de tecnologia habilitada para dar expressão, externalizar o que é germinado na fonte, o cérebro. Ambos, cérebro e aparelho, estão de tal forma conectados até se tornarem inseparáveis, o que nos permite perceber que o aparelho fonador funciona como uma tecnologia da inteligência, uma tecnologia cognitiva como são também cognitivos um microscópio, um telescópio, uma câmera fotográfica, uma televisão e, hoje, um computador.

A partir disso, pode-se extrair a máxima ou até mesmo o axioma de que, sem linguagem, não há cognição. Mas a cognição depende da linguagem tanto quanto a linguagem depende de alguma tecnologia na qual se materializar, na qual a linguagem toma corpo. Eis aí uma das chaves da comunicação tanto humana quanto não humana, com a diferença de que, o humano não é só loquens, mas também talentosamente faber, quer dizer, o animal humano constrói tecnologias que funcionam como suportes externos e socializados para novas linguagens. Quando digo linguagem, evidentemente, o termo não se reduz à linguagem verbal que, hoje, mais do que nunca, é apenas uma dentre uma diversidade de outras linguagens: visuais, sonoras, gráficas, notacionais, simbólicas, hipermídia, linguagem de máquina, linguagem de programação, linguagem algorítmica etc., todas elas dispondo dos devidos suportes tecnológicos nos quais tomam corpo: livros, papel, telas, gramofone, máquina fotográfica, filmes, fitas magnéticas, rádio, TV, computador etc.

Aqui encontramos o ponto para retornar à primeira diferença deixada mais atrás e que nos conduz a uma outra máxima: as linguagens humanas evoluem e, no processo de sua evolução, crescem e se diversificam. A inteligência é como a vida, cresce e se multiplica, tomando conta de todo o espaço disponível. Tanto uma quanto a outra, portanto, não podem parar de crescer. No caso da inteligência, como se dá seu crescimento? Se a cognição é inseparável da linguagem, então, a inteligência cresce nas linguagens que o ser humano produz e reproduz, todas elas amplificações de sua capacidade cerebral.

A extrassomatização da inteligência

Desde muito cedo, o ser humano buscou superar tanto a fragilidade do seu cérebro mortal como depositário da memória quanto a contingência da fala evanescente e fugaz: começou a gravar imagens nas grutas para driblar a dissipação da memória no tempo. Do mesmo modo, inventou formas de escrita pictográficas, ideográficas, hieroglíficas como meios de preservação externa, socializada, dos seus modos de conhecimento do mundo. Tais fatos têm me levado a afirmar (Santaella, 2003) que, por meio das linguagens, aí se deu o início do crescimento do cérebro humano, de sua capacidade cognitiva e, consequentemente, de sua inteligência fora do corpo biológico, mas devidamente a ele integrado pelos próprios fios do pensamento e da inteligência suportados pelas linguagens.

Tanto é assim que grandes saltos em tal direção foram se dando no Ocidente a partir da implantação, no mundo grego, da escrita alfabética e seus suportes de inscrição que vieram se exponenciar com a invenção de Gutenberg. Embora a propagação dos livros tenha impulsionado consideravelmente a exossomatização da inteligência, seu ponto de expansão e aceleração viria com as tecnologias de linguagem trazidas pela revolução industrial: máquina fotográfica, fonógrafo, cinematógrafo, seguida pela revolução eletroeletrônica de que resultaram o rádio e a TV. O que é importante notar é que, nessas máquinas, que chamo de sensórias (amplificadoras dos sentidos da visão e audição) transitam linguagens e, nestas, constituem-se novas formas de cognição que ampliam a inteligência humana. Entretanto, essa ampliação só viria alcançar seu cume evolutivo com as máquinas cerebrais, a saber, os computadores.

Se, por limitações físico-biológicas, o crescimento do cérebro não podia se dar dentro da caixa craniana, a inteligência humana tratou de se desenvolver fora do corpo humano, extrassomatizada sub specie de linguagens que foram se sofisticando cada vez mais nas máquinas replicadoras das funções sensório-motoras próprias da revolução eletromecânica, passando pela eletroeletrônica até atingir as tecnologias da inteligência da revolução teleinformática.

Enquanto as linguagens geradas em suportes eletromecânicos, especialmente a foto e o cinema, e as linguagens geradas em suportes eletroeletrônicos, especialmente, as radiofônicas e televisivas, são linguagens voltadas prioritariamente para a ampliação de um tipo de específico de inteligência, aquela do infotenimento comunicacional; enquanto a própria internet e suas redes sociais estão ainda direcionadas para o infotenimento agora incrementado pela interatividade e compartilhamento, com a inteligência artificial, as máquinas cerebrais estão atingindo um ponto de magnitude de tal ordem em que são simulados e emulados os atributos mesmos constitutivos da inteligência em si. No estado da arte em que hoje estamos, seria difícil encontrar prova maior do que essa do vetor para o crescimento da inteligência humana. É diante disso que podemos afirmar, sem muitos titubeios, que a inteligência artificial veio para ficar, crescer e se multiplicar.

Sinais de alerta

Dito isso, para finalizar, dois sinais de alerta precisam ser levantados. O primeiro deles diz respeito à desmontagem do argumento que vê nesse crescimento um mero determinismo tecnológico. No seu Evolution of the modern mind, Merlin Donald (1991) considera como a mais recente etapa nos ciclos evolutivos da espécie humana as extensões da capacidade simbólica ou memória externalizada como ele as chama, isto é, as formas de escrita e de imagens, seguidas pela hiperprodução técnica de imagens e sons e, então, pelas tecnologias teleinformáticas,. A essa sequência hoje se acrescentam todos os recursos da internet, a computação em nuvem, a internet das coisas, o big data e, certamente, o estágio atual da inteligência artificial.

De fato, em nenhuma fase de sua evolução, o humano esteve dependente apenas do orgânico ou do instintivo. Não há uma dicotomia entre natureza e cultura, pois a sociedade humana se formou no processo gradativo de artificialização do mundo. Portanto, a ciborgização generalizada atual nada mais é do que a continuação inelutável da saída do humano da natureza na construção de outras naturezas artificiais. De resto, a natureza sempre demonstrou uma maleabilidade para o artificial, de modo que as fronteiras entre natureza e cultura, entre organismo e máquina têm de ser continuamente redesenhadas em concordância com fatores históricos complexos.

O segundo sinal de alerta consiste no fato de que, o inegável crescimento da inteligência é uma postulação que pode ser historicamente comprovada. Entretanto, seria arriscado passar a tal postulação um julgamento de valor que tende para a euforia. Embora a inteligência artificial, de fato, possa facilitar e incrementar tarefas humanas e aperfeiçoar os serviços prestados pelas corporações e os governos, apresenta-se aí um campo que merece e exige ser tratado com a arte do cuidado e com precauções éticas. Isto porque a inteligência artificial, tanto quanto quaisquer outras tecnologias, não está apartada da inteligência humana. Esta, longe de ser alimentada pela razão pura, como queria Kant, ao contrário, é sobredeterminada pelo inconsciente. Ora, o inconsciente é traiçoeiro, de modo que tudo que diz respeito ao humano fica, de saída, marcado pelas insígnias das ambivalências, paradoxos e contradições. Por isso, há que se adensar a arte do cuidado.

Referências

DONALD, Merlin (1991). Origins of the modern mind. Three stages in the evolution of culture and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press.

NISSON, Nils J. The quest for artificial Intelligence. A history of ideas and achievements. Cambridge University Press, 2010.

RUSSELL, Stuart J.; NORVIG, Peter. Artificial intelligence. A modern approach. 3a. ed. New Jersey: Prentice Hall, 2010.

SANTAELLA, Lucia. A semiose do pós-humano. In Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003, pp. 209-230.

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