MANIFESTO datado ChatGPT & Educação

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Dated Manifesto: ChatGPT & Education

Lucia Santaella

Generative AI and, in particular, ChatGPT fell like a meteor in the midst of contemporary societies, interfering in all areas of their activities.One of these areas, education, is affected in its entirety.More than a brief article, this text presents itself as a dated Manifesto that advances  considerations and courses of action that cannot be postponed.Any procrastination is inexcusable and will bring consequences.

O tema tem fervido em todos os meios de transmissão de informação, de notícias e de pseudo notícias: a IA generativa. Irei apontar para duas fases que, não obstante o pouquíssimo tempo transcorrido, já foram vividas desde a entrada impactante em dezembro pp do ChatGPT na vida individual e social.   

A primeira fase assemelhou-se a um abalo sísmico provocado pelo susto, mais do que surpresa com que o Chat surgiu como um relâmpago que tomou as sociedades humanas de assalto. Isso não foi casual, a IA agora veio à superfície, conversando como se fosse gente, e com uma facilidade interativa espantosa. Isso provocou um alvoroço disparatado, inclusive no campo da educação. Foram divulgadas proibições de uso do Chat por instituições na França e nos Estados Unidos. Uma solução que parece de prudência, mas apresenta também seu lado de alienação. Pelo não e pelo sim, é uma ingenuidade minimizar a quantidade de questões, para não dizer problemas a serem pensados e testados que o Chat traz para os processos de ensino-aprendizagem, para os efeitos potenciais no conhecimento e habilidades humanas e, especialmente, para as tradicionais modalidades de avaliação.

A segunda fase, que já se faz notar, em muitas áreas, mas para ficarmos na educação, indica sinais de movimentação para uma incorporação, em maior ou menor medida, razoável, ética, prudente e segura da IA generativa nos processos de ensino e aprendizagem. As redes já estão pontilhadas aqui e ali de divulgações dessas iniciativas, em paralelo com vozes que continuam a diagnosticar que esse será o fim da humanidade. Nas últimas semanas reuni um número significativo de divulgações pelas redes de estratégias de uso educacional do Chat. Seguem apenas alguns exemplos entre muitos que já estão correndo pelas redes:

– “Webnar gratuito: Chat GPT nas escolas: desafios e aprendizados para gestão.”

– Na Ciência: “professora ensina a usar o ChatGPT para ajudar na escrita científica.” 

– “Mapa do ChatGPT para artigo científico.”

– “Transforme o conteúdo do ChaGPT em livros bestsellers.”

– “10 regras para interagir com o GPT.”

– “20 estratégias para uso educacional do GPT.”

– “Saiba como usar o ChatGPT para potencializar a aprendizagem e conheça novas formas de avaliar os estudantes.”

Em suma: não é possível cobrir o sol com a peneira. Essa nova forma de inteligência está aí e está se impregnando cada vez mais, inclusive na educação. Portanto, isso demanda que a questão comece a ser pensada e mais bem-compreendida para além do episódico.

BREVE FLUXO TEMPORAL DA TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO

Para não cairmos de paraquedas diretamente no terreno da IA e educação, é preciso recuperar um fluxo temporal relevante para chegamos aonde estamos. Não há educação sem a incorporação de mediações técnicas ou tecnológicas que, longe de funcionar como meros acessórios, conformam os sistemas e processos educacionais como um todo. Essas mediações começaram na cultura da oralidade e, em seguida, caminharam para a cultura da escrita e do livro. O status quo do livro vem sofrendo abalos e também passando por transformações desde o advento da cultura digital.

Digo abalos porque os sistemas educacionais, ainda presos a uma formatação nascida na cultura do livro e da transmissão sob as luzes do Iluminismo, viram-se obrigados a procurar chaves de mudança por meio de metodologias ativas, sala de aula invertida, metodologia baseada em projetos, mudanças no papel do professor etc. Os procedimentos pedagógicos também têm buscado inserções estratégicas dos inúmeros recursos digitais e online, de modo a extrair proveito educacional mesmo diante do império da atual plataformização da sociedade e da vida.

A educação, sob o ponto de vista das novas tecnologias, costuma ser chamada de educação midiática. De resto, um nome genérico, desatualizado que não quer dizer mais nada. Passou a era das mídias em si. Estamos agora vivendo na era das redes e da performatividade algorítmica. Portanto, o adjetivo midiático acaba por denunciar a tendência ao conservadorismo da educação.

Não é preciso muito conhecimento sobre a inserção dos recursos tecnológicos na educação para se dar conta de que tudo começou com os laboratórios de informática das escolas que foram envelhecendo na sua inutilidade conforme o computador foi cada vez mais se transformando em mídia de todas as mídias. Isso abriu caminho para cursos online que evoluíram naquilo que, há vinte anos, ficou conhecido como “ambientes virtuais de aprendizagem”, com seus “desenhos instrucionais” para o planejamento, desenvolvimento e avaliação de cursos online. Os nomes variam, mas o alvo é convergente, ou seja, a utilização dos recursos oferecidos pelo computador e seus complementos.

Nesse contexto, o termo bastante genérico para dar conta de uma série de procedimentos é e-learning, isto é, aprendizagem que se desenvolve por meio eletrônico.  A profusão terminológica não é sem razão, pois é indicadora das iniciativas pedagógicas para acompanhar pari passu a emergência de novos recursos tecnológicos. Surgiram assim a m-learning, aprendizagem móvel, e a u-learning, aprendizagem ubíqua.

Além dessas modalidades mais gerais, há ainda submodalidades marcadas pela especificidade de cada tipo de recurso. Desse modo, pode-se falar em app-learning, Novidade também é a aprendizagem adaptativa na qual o ambiente de aprendizagem, que é construído, busca oferecer adaptabilidade às necessidades e estilos de aprendizagem de cada estudante. Mas quando falamos em aprendizagem adaptativa, deparamo-nos com os recursos que levam essa condição a uma potência muito nova, ou seja, a inteligência artificial. De fato, aplicativos de IA, mais tardiamente do que em países do norte global, foram sendo postos em uso, nas escolas privilegiadas no Br, como facilitadores para a aprendizagem e sua gestão, o que não deixa de implicar que muitos cuidados sejam tomados para que não haja vazamento de dados pessoais e outros danos.

CHATGPT: UMA REVIRAVOLTA INAUDITA

A entrada do ChatGPT, contudo, significa uma reviravolta inaudita na educação. O mundo digital já havia provocado a emergência de um novo ecossistema de produção e transferência do conhecimento cuja complexidade só tem crescido. Em meio à convergência tecnológica e à ubiquidade que estamos vivenciando, os modelos educacionais tradicionais foram postos à prova. Entretanto, as instituições em quaisquer níveis de ensino, inclusive do nível superior, na costumeira inércia deste país, já haviam fechado os olhos para a nova lógica do conhecimento promovida pela digitalização interativa. Agora, entretanto, com a IA generativa, as instituições devem se colocar em uma corrida contra o tempo para recuperar minimamente as etapas perdidas.

Os jovens estão com a mão na massa do GPT. É inevitável que façam uso dele para todos os tipos de tarefas educativas ou não. Não há tempo a perder. Em vez de as instituições e outros tipos de comunidades ficarem à espera de regras universais de uso ou de proibições, sugere-se como primeiros socorros que sejam consensuadas regras ad hoc para cada tipo de comunidade como meio de preservação de uma possível trava ética. Como já escrevi em um blog recente, a IA generativa veio para colocar a ética humana à prova.

A grande questão que surge, em meio ao tsunami das mudanças, é como traduzir a tradição dos valores humanos que herdamos do passado e que não devem ser perdidos. Embora as mudanças nos hábitos adquiridos sejam inevitáveis, os princípios formadores que guiam os ideais da educação não podem ser abalados. Esses princípios, que visam ao desenvolvimento humano, estão na base da pedagogia e sua manutenção frente aos novos tipos de mediações exige a arte do cuidado e estratégias engenhosas. Não há receitas genéricas.

Cada nível de aprendizagem deve ser levado em conta. Estratégias válidas para um nível podem não caber para outros. Os aplicativos de IA para a educação buscam ou deveriam buscar a consideração dessas distinções. Mais do que isso, o que precisa ser considerado, quando se fala em IA e educação no contexto atual, é o fato de que com a IA generativa a IA mudou de figura, de fato, muito especialmente no que diz respeito à educação. Não há como evitar aquilo que chamo de invasão do GPT.  

Desde o ensino básico avançando para a educação continuada, esforços são necessários para promover a saída da pura curiosidade e do amadorismo. As instituições precisam sair da inércia. Antes de tudo, precisam desenvolver mecanismos fundamentais e gerais de regulação ética que visem às fontes, à concepção e à certificação desse sistema. Portanto, o Chat precisa ser acolhido e devidamente incluído nos códigos éticos das instituições.

Então, em cada situação e cada condição específica de ensino-aprendizagem, devem ser negociadas regras ad hoc para o uso sadio. Relações de confiança entre professores e alunos e o redesenho das etapas do processo educativo até as formas de avaliação são muito mais eficazes do que o mero policiamento dos estudantes.

Por enquanto, é o que me parece urgente, mas não estacionário. A mudança do ritmo da própria mudança, que é característica fundamental do contemporâneo, queira-se ou não, coloca o educador em estado de alerta permanente e infatigável.

Para não perder o bonde do ChatGPT

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Lucia Santaella

Since its launch just two months ago, ChatGPT, from the generative AI family, is producing a high fever in culture, society and politics. Although contemporary culture, saturated with novelties and disruptions, does not cease to go from one feverish state to another, now the case is about an intelligent technology capable of dialoguing with human beings. Speech has always been the prerogative of the human animal. That an intelligence — called artificial, a robot — now starts talking is able to shake the foundations of being human. This article presents some ideas about the issue.


As tecnologias, que teimo em chamar de inteligentes, avançam a passos tão céleres que recentemente testemunhamos picos de febres midiáticas que não nos dão descanso: metaverso, então o robô falante LaMDA, que simula sentir, e agora o robô dialogante, ChatGPT que está provocando um verdadeiro delírio interpretativo e opinativo. Como se estivesse antecipando essa febre que não tem mais do que um mês (o chat foi lançado em dezembro-2022 e, na sua primeira semana, foi experimentado por mais de um milhão de pessoas!), no meu livro A inteligência artificial é inteligente? que está saindo do forno da Ed. Almedina, já poderava:

Não é por acaso que a visão cultural da IA oscile entre os extremos do entusiasmo e dos temores, ambos desmedidos. De fato, atividades há pouco tempo reservadas à inteligência humana, tais como compor textos ou analisar o conteúdo de imagens, agora são frequentemente executadas por máquinas, graças ao poder adquirido pelos algoritmos. Contudo, os efeitos que isso tem provocado nas pessoas está mais perto da fantasia do que da realidade. Reduzir o poder das fantasias infundadas está entre os principais objetivos deste livro que pretende funcionar como um convite para que observemos a IA mais de perto.

Neste breve artigo, pretendo também cumprir o que lá pretendia, ou seja, no caso agora, ver o ChatGPT mais de perto, longe dos alaridos das opiniões desenraizadas. Antes de tudo faço duas sugestões:

  1. Evitar os ressentimentos antropocêntricos contra a IA, visto que ela é alimentada por dados humanos, esses dados são selecionados e até higienizados por humanos, os algoritmos são treinados por humanos (é certo que, a partir daí, os algoritmos ganham certa vida própria e passam a aprender, mas podem ainda passar pela curadoria humana). Moral da história: há aí um cordão umbilical que não pode ser cortado. Diferente do cordão umbilical biológico que, uma vez cortado, libera uma outra vida, a inteligência humana e a IA vivem em simbiose. Ambas inteligentes, mas de modo muitíssimo diferente.
  2. Controlar os preconceitos ideológicos que oscilam entre os extremos da ingenuidade eufórica e do moralismo cético. Se esses extremos não forem controlados, ficam fechadas as portas do caminho a ser seguido: buscar conhecer e compreender para poder avaliar, com saudável e ponderada desconfiança, os impactos e consequências.

Há quase cinco anos, quando textos sobre a IA começavam a borbulhar em artigos, colunas, posts e mensagens corridas nas redes, terminei um artigo, também breve, com a seguinte conclusão: “Preparem os seus corações, pois a IA veio para ficar, crescer e se multiplicar” (https://transobjeto.wordpress.com/2018/05/19/a-ia-veio-para-ficar-crescer-e-se-multiplicar/). Não se tratava aí de adivinhação ou de visionarismo, mas sim, da convicção de que o vetor da inteligência é crescer. A inteligência é como a vida: ela não pode parar de crescer e, para isso, vai ocupando todo o espaço disponível.

A inteligência, cuja raiz encontra-se na linguagem, está no âmago do Sapiens e ela vem crescendo e se diversificando para fora do cérebro orgânico do Sapiens, nos aparelhos, dispositivos, máquinas, hoje nos computadores, seus aplicativos e plataformas (tese desenvolvida em detalhes no meu livro Neo Humano. A sétima revolução cognitiva do Sapiens – 2022), com o acento de que a inteligência é contraditória e ambivalente: pode esparramar-se pelas banalidades do mal, agudo ou disfarçado ou buscar seu destino em consonância com a dignidade ética.

O ChatGPT está provocando tanto fervor porque, em muito pouco tempo, a IA aprendeu não só a falar, mas a dialogar, em uma competição com aquilo que faz do animal humano ele ser humano. Enquanto a fala do humano tem carne, respira, pulsa e palpita, esse novo robô sustenta-se na matéria da escrita. Mas, antes da pressa da interpretação, vamos nos aproximar para conhecê-lo.

De onde vem o ChatGTP

Para evitar a ideia imediatista de que todos os hypes caem de paraquedas sabe-se lá de que céu (via de regra do céu da ignorância), justo o que vem ocorrendo com as opiniões sobre o ChatGPT, é preciso compreender que ele é bisneto da IA, neto da aprendizagem profunda e filho do processamento de linguagem natural. A pesquisa sobre IA não começou ontem. Ela já tem 70 anos, o que, na vida humana, corresponderia a uma senhora já idosa. Quase todos os textos sobre IA têm início com a sua história de altos e baixos. Os baixos costumam ser chamados de invernos da IA. Foi só na última década ou pouco mais do que isso que a IA passou a mostrar a que veio. Suas aplicações têm se multiplicado e, se formos fundo, há IA em quase tudo que fazemos hoje. Ela está lá onipresente, mas sempre invisível, pois softwares e algoritmos não se assemelham a esculturas que se exibem ao nosso olhar. São linguagens, no grau máximo de abstração. Mas, nem por isso, agem, produzem resultados, estes sim, visíveis nos seus efeitos pragmáticos.

Não vamos começar de tão longe a visita ao robô dialogante (assim passei a chamá-lo, pois, na realidade é isso que ele é). Basta pegar o nosso bonde no enorme sucesso da aprendizagem profunda (deep learning) aquela que, por meio de funções matemáticas, imita até certo ponto o funcionamento das redes neuronais do nosso cérebro. Isso levou a uma variedade de aplicações. Entre elas, os carros autônomos, o reconhecimento de imagem, o problemático reconhecimento facial e também aquilo que aqui nos interessa prioritariamente: o processamento de linguagem natural (NLP, na sigla em inglês), potente para a interação humano-computador (afinal somos não apenas seres falantes, mas adoramos conversar), para aplicações em chatbots (por exemplo, aqueles chatíssimos atendentes quando telefonamos para uma empresa em busca de informações), para tradução de idiomas (com que o Google tradutor nos premia) e para resumo de textos (que, via de regra, os alunos levam algum tempo para aprender a fazer).

Seguindo nessa trilha, o próximo ponto de parada é o Transformer (que não tem nada a ver com algum monstro produzido em Hollywood por meio de efeitos especiais). Ele pertence ao que é chamado de modelo amplo de linguagem (Large Language Model) ou seja, são algoritmos que aprendem a realizar associações estatísticas entre bilhões de palavras e frases para executar tarefas como gerar resumos, traduzir, responder perguntas e classificar textos. O Transformer, por sua vez, é uma técnica matemática de economia de tempo, inventada em 2017, no sentido de permitir que o treinamento algorítmico ocorra em paralelo em muitos processadores. No ano seguinte, “o Google lançou um grande modelo baseado em Transformer chamado BERT, que levou a uma explosão de outros modelos usando a técnica. Frequentemente, eles são pré-treinados em uma tarefa genérica, como previsão de palavras, e depois ajustados para tarefas específicas: eles podem receber perguntas triviais, por exemplo, e treinados para fornecer respostas” (Hutson, 2021, https://www.nature.com/articles/d41586-021-00530-0).

Desde então nasceu uma família de Transformadores: GTP1, 2 e o mais recente 3, de que o Chat é um rebento. GPT é a sigla para Transformador Pré-treinado Generativo. O 3 é mais de 100 vezes maior que seu antecessor de 2019, GPT-2. “O simples treinamento de um modelo tão grande, que exigia uma coreografia complexa entre centenas de processadores paralelos, foi “uma impressionante façanha de engenharia”, nas palavras de Colin Raffel (apud Hutson, ibid.).

A explicação de como isso se tornou possível depende da potência da rede neural que é medida por quantos parâmetros ela possui. Os números definem a força das conexões entre os neurônios. Mais neurônios e mais conexões significam mais parâmetros. O GPT-3 tem 175 bilhões. O próximo maior modelo de linguagem desse tipo tem 17 bilhões (mais força bruta do que isso parece impossível, mas ela cresce!). “Em janeiro (2021), o Google lançou um modelo com 1,6 trilhão de parâmetros, mas é um modelo ‘esparso’, ou seja, cada parâmetro trabalha menos. Em termos de desempenho, isso equivale a um modelo ‘denso’ que tem entre 10 bilhões e 100 bilhões de parâmetros”, nas palavras de William Fedus (apud ibid.).

O ChatGPT é um ajustamento da versão avançada do GTP-3, que também era capaz de produzir textos, mas textos duros, sem a maleabilidade da linguagem natural. Ademais a otimização do Chat, como o próprio nome diz, voltou-se para o diálogo com os usuários, ou seja, desenvolver a capacidade de responder perguntas. Ele cria texto ao vasculhar bilhões de palavras de dados de treinamento e aprender como as palavras e frases se relacionam entre si (Stolke-Walker, 2022, https://www.nature.com/articles/d41586-023-00107-z#Echobox=1674273921).

A IA generativa

O ChatGPT pertence à família da IA generativa que se estrutura em duas molduras: Generative Adversarial Network (GAN) e Generative Pre-trained Transformer (GPT). A GAN usa duas redes neurais que competem entre si para realizar previsões mais precisas, colocando uma contra a outra (portanto, “adversarial”) de modo a gerar novas instâncias de dados sintéticos que podem passar por dados reais. As GANs usam uma estrutura cooperativa de jogo de soma zero para aprender. Elas são amplamente utilizados na geração de imagem, vídeo e voz. O GPT é um modelo de linguagem autorregressivo baseado na arquitetura do transformador, pré-treinado de maneira generativa e não supervisionada, que mostra desempenho decente em configurações multitarefa de zero/um/poucos disparos (Luhui Lu, 2022, https://pub.towardsai.net/generative-ai-and-future-c3b1695876f2).

Muita discussão foi recentemente despertada pelos lançamentos de IAs generativas para a produção de imagens, um tipo de produção inédita pois, graças aos algoritmos, a imagem é produzida a partir de comandos verbais, um caso extraordinário de tradução intersemiótica. Programas computacionais de tradução de som em imagem e vice-versa já são aquisições que se solidificaram na produção criativa. Mas a tradução do verbal ao visual precisava do Transformador. Entre outros lançamentos desse tipo, o DALL•E 2, por exemplo, é proveniente da mesma empresa do ChatGPT, a Open AI. O DALL E 2 emprega principalmente duas técnicas: CLIP (Contrastive Language-Image Pre-training) e modelos de difusão. O CLIP é essencial para conectar a descrição do texto aos elementos da imagem. Os modelos de difusão são modelos generativos baseados em transformadores. O Dall E 2 usa uma versão do GPT-3 modificada para gerar imagens. Ele pode combinar conceitos, atributos e estilos para gerar imagens realistas ou fantásticas em altas resoluções.

Tanto essa IA generativa de imagens quanto outras de tipo similar vêm despertando discussões no campo da arte, do design e da arquitetura, mas nada que possa ser comparado ao estado febril que o ChatGPT vem provocando em tão pouco espaço de tempo. Por que será? A hipótese é que, enquanto a geração de imagens afeta o nicho dos produtores criativos no campo da visualidade, o ChatGPt afeta todos os seres humanos falantes e letrados, levando nisso todas as profissões e formações educacionais em todas as áreas em que a linguagem verbal em maior ou menor medida está envolvida. Onde ela não está? Eis a questão. Portanto, a interferência do ChatGPT no cerne do humano é gigantesca e aguda.

O ChatGPt falando de si mesmo

Mal havia eu começado a escrever este texto, já fui espionada pelos algoritmos e, poucas horas depois, recebi no meu e-mail, sem que, de modo algum, tenha pedido, vindo da News Letter do Linkedin (sem que eu houvesse aberto esse aplicativo), uma postagem de Carla Oliveira, na qual ela apresenta um texto escrito pelo ChatGPT, que, a partir das perguntas por ela formuladas, forneceu respostas claras e objetivamente secas sobre si mesmo: o que ele é, por que foi criado, de onde vem sua criação (a empresa Open IA, fundada em Elon Musk e outros, em 2015), suas aplicações (produção textual, agente de conversação, geração de conteúdo, postagens em plataformas de redes sociais, e-comércio, respostas automáticas de e-mail, modelagem de linguagem e outras, pois o modelo pode ser ajustado para tarefas específicas), suas ameaças (criar dependência do modelo, plágio, vieses, acriticidade) e, inclusive, o que pensa de si mesmo (em linguagem isenta dos típicos constrangimentos, volteios e modalizações, que afetam o ser humano quando fala de si!). Sem dúvida, impressionante é a primeira impressão de todos aqueles que o estão experimentando. Sim, o texto é correto, claro, frases e parágrafos são perfeitamente ajustados. Contudo, o conteúdo semântico é achatado se compararmos às explicações que são dadas por especialistas sobre o tema.

Propositalmente escrevi o presente texto com características e recursos que o robô dialogante, com sua redação de estudante muito bem comportado (alguns já o chamam de papagaio estocástico), não seria capaz de imitar. Ao contrário do meu, seus textos não apresentam pessoalidade marcada, metáforas que nem precisam ser muito poéticas (bastam as caseiras), ironia para bons entendedores, fontes de referência explicitadas, senso comum, contextualização situacional, etc. Em suma, se esse robô não melhorar seu desempenho adquirindo marcas pessoais que todo texto humano (mesmo quando o autor tenta disfarçá-las) deixa como rastro, não teremos que nos preocupar com plágios, pois as redações do ChatGPT, embora corretamente estruturadas, com coerência sintática e consistência semântica, são tão padronizadas que, para aqueles que têm alguma experiência em análise de texto, não será difícil reconhecer que o robô dialogante andou por lá.

Isso não significa, de modo algum, minimizar a intensidade das consequências científicas, culturais, políticas, jurídicas, éticas, educacionais e psíquicas, que a entrada da IA generativa no âmago do reino humano — o reino da linguagem — está trazendo e trará. Diante disso, não temos apenas que preparar os nossos corações, mas erguer as mangas do nosso entendimento e capacidade crítica e criativa pois o ChatGTP, que está apenas em sua fase experimental, embora tenha também um fundo lúdico, não veio para brincar.

Novas lentes sobre a ética em prol da inovação tecnológica responsável

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Por Silvia Piva

Agir de tal maneira que os efeitos de tua ação não sejam destruidores da futura possibilidade de vida humana” – Hans Jonas

           A preocupação ao redor da ética tem levantado uma série de questões a partir dos novos contextos trazidos pelas tecnologias emergentes. Já estamos cientes, a cada dia que passa, que novos guias éticos precisam ser desenvolvidos para ampliar nossa perspectiva de convívio social e sobre como uma sociedade pode coexistir com as agências não-humanas.

           O Século XXI impõe uma problematização filosófica sobre o modo de viver moral e social dos humanos que estão em simbiose com as tecnologias. As áreas cinzentas serão cada vez maiores e suas tênues linhas entre a discussão do que é bom ou ruim para uma sociedade precisa estar abraçado por guias éticos que se insiram nesse novo contexto social. 

            A ética, por sua vez, está sempre inserida em contextos. É por meio dela que refletimos sobre aquilo que é essencial ao sentido da vida humana, na qual interagem algoritmos, sensores, big data, animais, vírus e todo o planeta. O sentido da ética, portanto, deve ir além daquele aplicado à sociedade a partir de seu conceito clássico. Sendo assim, precisamos recolocar perguntas fundamentais em nosso contexto de sobrevivência: o que é o bom viver? O que é uma boa sociedade? Como colocar a tecnologia a favor dos humanos, do meio ambiente e dos seres vivos? 

         A tecnologia, de tempos em tempos, transforma radicalmente a maneira como vivemos. Porém chegamos num momento em que precisamos estar mais conscientes sobre as ações por ela produzidas e de suas consequências, antes que danos possam ser causados de maneira estrutural em nossa sociedade.

           Tecnologias fazem parte da sobrevivência do humano e precisamos empregá-las da melhor maneira para promover valores que integram a sociedade, sociedade essa interpretada a partir de um conceito muito mais amplo do que aquele que conhecemos atualmente.

           Portanto, é preciso construir perguntas e desenvolver propostas sobre guias éticos que renovem o habitat do ser humano que atua em simbiose com tecnologias e que vive em conjunto com as demais espécies e com o planeta.

          De fato, vivemos em um período histórico que apresenta inúmeros desafios globais de alta complexidade, os quais exigem soluções que adotem estratégias de governança colaborativa e sustentável. No entanto, a crença partilhada por muitos de que a inovação e as novas tecnologias podem resolver quase todos esses desafios é não apenas ingênua, como perigosa.

           O avanço exponencial da tecnologia impõe dilemas éticos muitas vezes ignorados na concepção e ao longo do desenvolvimento de produtos e serviços. É fato, porém, que empresas que tenham compromisso com a geração de impactos sociais positivos precisam estar atentas à forma como conduzem suas atividades, de modo a mitigar riscos.

         Analisar o design ético e os riscos sobre o uso de determinada tecnologia ainda não faz parte do nosso cotidiano. Hans Jonas trata a técnica como um exercício de poder humano, ou seja, como uma “forma de ação”, sujeita à avaliação moral e ética. A tecnologia, de acordo com sua visão, teve seu poder aumentado de forma contundente de modo que a ética está despreparada para enfrentá-lo. Não percebemos a dimensão de nossas escolhas e notadamente precisamos trazer nosso olhar para o desenvolvimento ético em novas tecnologias.

            A busca pela ética no desenvolvimento de tecnologias emergentes deve ser a garantia e a confiança de que os riscos sejam apenas decisões estratégicas em prol de inovações necessárias, mas que jamais irão comprometer o bem-estar de usuários, partes interessadas e da sociedade em geral.

            Portanto, trazer a ética para o centro de discussões em inovações tecnológicas não é e nem jamais será um elemento bloqueador de ideias inovadoras e sim um guia para que estas possam trazer a resolução de problemas a partir de uma observação sobre riscos calculados e devidamente mitigados.

            No fundo, a visão da ética, seja em tecnologia ou fora dela, deve sempre estar atrelada ao nosso bem viver – na visão dos filósofos gregos – da vida que vale a pena ser vivida, em melhores hábitos planetários e em processos de conexão.

         A prioridade de uma nova lucidez ética precisa assumir o centro do debate, a fim de que novos guias éticos possam dirigir o avanço das tecnologias emergentes em prol do bem-estar da humanidade e não contra ela.

Referências

CUPANI, Alberto. Filosofia da Tecnologia: Um convite. Florianópolis: Editoria UFSC, 2017.

OLIVEIRA, Jelson. Três pilares para a filosofia da tecnologia. Filosofia da Tecnologia, Caxias do Sul: Educs, 2020.

A reinvenção da internet e implicações de uma nova era de regulação digital

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Por Anderson Röhe

Em abril de 2022, EUA e União Europeia (UE) emitiram um comunicado conjunto acerca da “Declaração para o Futuro da Internet”[1]. Documento que não só contém protocolos e regras técnicas, mas também compartilha valores e visões comuns de mundo do que consideram uma “internet global, livre, interoperável, mais aberta, segura e confiável”. Ocasião em que a UE, por intermédio de um pacote de medidas ex ante, isto é, de natureza precaucional ou preventiva, anunciou novos parâmetros para o futuro da governança digital através de iniciativas como o Digital Markets Act (DMA) e Digital Services Act (DSA)[2]. Visando regular tanto o mundo dos negócios, quanto a vida em sociedade no tocante à proteção das liberdades individuais, da livre iniciativa e concorrência na internet.

Aqueles propuseram, então, o compromisso público em defesa de uma rede mundial de computadores única e descentralizada que consagra tanto direitos, quanto regras e deveres típicos de regimes democráticos. Tais como a defesa da liberdade de pensamento, expressão e preservação do estado de direito (rule of law). Expressando, por outro lado, preocupação com o crescente impacto de ciberataques; suposta interferência em processos legislativos e tomadas de decisão relevantes por meio desinformação; monopólio e concentração abusiva do poder econômico; e, sobretudo, com relação ao potencial perigo de repressão política por governos autocráticos que sistematicamente violam direitos humanos e liberdade na internet.

Declaração que é, de fato, legítima e oportuna para o atual momento de extrema polarização política, crise econômica-energética, ascensão do populismo e neonacionalismos pela extrema direita (na Europa, assim como em outras partes do mundo). Mas que, na prática, revela-se não tão neutra e/ou parcial assim. Visto que é declaradamente de natureza política. Ao servir de contramedida do chamado Norte Global ou mundo hegemônico visando manter interoperabilidade, sua soberania digital e autonomia regulatória. Sobretudo a União Europeia, dada a tendência de concentração monopolística do mercado de Inteligência Artificial em dois pólos de influência dominantes [3], diante do acirramento da disputa tecnológica sino-estadunidense [4]. Cujos reflexos mais impactantes não estarão exatamente na China ou nos EUA, mas sobretudo em territórios de terceiros (proxy wars). Como é o caso europeu.

Assim, a “Declaração sobre o Futuro da Internet” – que originalmente visava a ser uma “aliança”, mas logo descartada, por remeter à ideia de uma (contra)reação militar – causa uma certa apreensão. Mormente no intuito de tentar frear o que julga ser concorrência desleal e anticompetitiva de potências emergentes, como Rússia e China, que, juntas, estariam incumbidas de minar a ordem democrática e estabilidade do Ocidente.

Os problemas, portanto, estão no timing (sim, mas por que agora?) e contexto turbulento em que a Declaração está sendo proferida. Isto é, na esteira da comoção pública frente à Guerra na Ucrânia e ameaça russa de se desligar da rede mundial de computadores [5]. Ao reforçar o argumento de que as novas tecnologias digitais de informação e comunicação – como Big Data, Internet das Coisas e Inteligência Artificial – têm o potencial (ambivalente e paradoxal) tanto de promover um mundo mais equilibrado e equitativo (externalidades positivas), quanto também minar a paz, a democracia e o Estado de direito vigentes (externalidades negativas).

O objetivo, então, do ensaio é aferir se esta proposta de regulação digital – como objeto de estudo – é bem intencionada; se serve a seus propósitos originais ou vai mais além, funcionando mais como força de repulsão do que de atração.

A conclusão é no sentido de que vai de encontro ao propósito que visa impedir. Isto é, ao invés de gerar consenso e união global, pode provocar a fragmentação da internet e subsequente exclusão de paísesnão signatários (como é o caso de incluir a Argentina e deixar de fora o Brasil)[6].  Movimento que não é novo, mas que, historicamente, revisita o clássico fenômeno da “balcanização” (Todorova, 2009)[7], ao induzir uma Splinternet (ou “internet balcanizada”).

Isto é, “em vez da única internet global que temos hoje, temos várias redes nacionais ou regionais que não se comunicam e talvez até operem usando tecnologias incompatíveis. Isso significaria o fim da internet como uma única tecnologia de comunicação global”. E “a era de um mundo conectado terminaria”. [8]

E, como resultado, pode inclusive resultar em alianças militares e arranjos político-econômicos ainda mais perigosos e arriscados que tornariam uma eventual “reconexão” praticamente irreversível. Ao incluir, a título de exemplificação, países como Ucrânia e Taiwan, mas não Rússia e China; seus “rivais”’ ou “concorrentes diretos”, respectivamente.

Afinal, ainda não há consenso global se deve haver algum tipo de autorregulação pelas próprias Big Techs (grandes empresas de tecnologia como Google, Amazon e Microsoft que hoje dominam as plataformas digitais), ou mesmo uma intervenção estatal direta no emergente campo da digitalização e datificação [9]. Já que a Declaração vem na contramão do ideal de “Independência do Ciberespaço” por John Perry Barlow (1996)[10]. Assim como há incertezas se as agências, autoridades regulatórias e os instrumentos institucionais hoje disponíveis sobre antitruste e concorrência são (Hovenkamp, 2021)[11] ou não (Lancieri e Zingales, 2021)[12] suficientes para suprir esse hiato ou lacuna legislativa. Ao incorrer nos riscos de sobreposições legislativas (mesmo entre os estados-membros da UE) e de conflito real entre as competências nacionais.


[1] European Commission. UE e parceiros internacionais apresentam uma Declaração sobre o futuro da Internet. Comunicado de Imprensa 28 abr. 2022. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_22_2695.

[2] The Digital Services Act package. Shaping Europe’s digital future. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package

[3] LEE, Kai-Fu. AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order. Mariner Books; 1ª edição, 2018.

[4] LEMOS, Ronaldo. Ciberguerra tem dinâmica própria. ITS Rio, 9 mar. 2022. Disponível em: https://itsrio.org/pt/artigos/ciberguerra-tem-dinamica-propria/

[5] BALL, James. Russia is risking the creation of a “splinternet”— and it could be irreversible. MIT Technology Review. 17 mar. 2022. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2022/03/17/1047352/russia-splinternet-risk/.

[6] GROSSMANN, Luís Osvaldo. Brasil fica fora de declaração em defesa da Internet que reúne 60

Países. Convergência Digital, 29 abr. 2022. Disponível em: https://www.convergenciadigital.com.br/Internet/Brasil-fica-fora-de-declaracao-em-defesa-da-Internet-que-reune-60-paises-60151.html?

[7] TODOROVA, Maria. Imagining the Balkans Oxford University Press. Updated Edition.April 15, 2009.

[8] BALL, James. Russia is risking the creation of a “splinternet”— and it could be irreversible. Op. Cit.

[9] JOHNSON, Khari. Europe Prepares to Rewrite the Rules of the Internet. Wired, 29 out. 2022. Disponível em: https://www.wired.com/story/europe-dma-prepares-to-rewrite-the-rules-of-the-internet/.

[10] BARLOW, John Perry. Declaração de Independência do Ciberespaço. 8 fev. 1996. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/ciber/textos/barlow.htm.

[11] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust and Platform Monopoly. Yale Law Journal, June, 2021. n.8, vol. 130. Disponível em: https://www.yalelawjournal.org/article/antitrust-and-platform-monopoly.

[12] LANCIERI, Filippo; ZINGALES, Luigi. Economic Regulation After George Stigler. Stigler Center, April 14, 2021. Disponível em: https://www.promarket.org/2021/04/14/economic-regulation-after-george-stigler/.

Categorias Sociais do Ciberespaço: Bloggers

Destacado

Por Filipe Albuquerque Ito Russo

الطنطاوي, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons

[Abstract] “From the origin of the word blog to the rise of the digital influencers, there is a lot of field to cover, this article aims to cover some of it, focusing mainly on the evolution of the social agents known as bloggers. Where do they come from? What moves them? How do they differ from journalists and diary writers? A brief overview of their virtual habitats, practices and themes is presented, along with the theoretical considerations some social scientists have come up with to understand the phenomena of the blogosphere, blogs, bloggers and their impact on both inside and outside the internet.”

Blogger é um termo em inglês que significa basicamente quem produz blog, blog por sua vez é um contrativo de web log, o qual significa registro na rede. Em outras palavras, blogger é um usuário da internet que interage na mesma produzindo voluntariamente registros públicos e virtuais, disponíveis para os demais internautas, em escala mundial.

Os blogs, que colocam em evidência o poder individual na rede das redes, têm servido para muitos propósitos desde o seu surgimento, quando Tim Berners Lee decidiu criar a sua página web e trocar informações com os seus colegas de trabalho. O termo blog, inserido em 2003 no dicionário Oxford da língua inglesa, foi cunhado pelo norte-americano Jorn Barger (Stutz, dez.1999). A revista Wired, na edição de dezembro de 1999, destaca que Barger criou o nome blog em 1997. No entanto, a Wikipedia – uma enciclopédia grátis disponível na Internet – traz dois nomes associados à palavra blog: Jorn Barger e Peter Merholz. Barger teria cunhado o termo weblog (web + log) ao descrever o processo de registro na web. Entre abril e maio de 1999, Merholz teria escrito blog pela primeira vez no seu weblog para evitar uma cacofonia. Blood (2002) relata que o termo ganhou visibilidade quando Cameron Barret escreveu, em 1999, um post intitulado Anatomia de um Blog no Camworld, seu diário na Internet (Quadros, Rosa e Vieira, 2005, p. 2-3).

Em seus primórdios, no fim da década de 90 e no início dos anos 2000, os blogs eram páginas web majoritariamente estáticas, pouco interativas, cheias de texto alfanumérico, com hiperlinks e uma imagem ou outra perdida na malha de palavras e números. As publicações obedeciam a uma ordem cronológica inversa, do conteúdo mais atual para o mais antigo, ainda presente nos atuais feeds e timelines das redes sociais digitais. Em 1999 inaugura-se a plataforma Blogger, inicialmente da Pyra Labs e atualmente da Google, em 2003 a plataforma WordPress, em 2006 a Twitter, em 2007 a Tumblr e em 2012 a Medium. Dali para cá a noção de blogueiro, blogueira e blogueire já sofreu ampliações para abranger youtubers, instagrammers, twitchers e tiktokers, alguns dos quais fazem da sua influência digital nas plataformas uma fonte de renda que em certos casos já chegaram às cifras dos milhões. ‘Há uma legião de indivíduos desamparados, cujo reconhecimento social fica subordinado inteiramente a uma visibilidade espetacular, que atende a uma ordem na qual o único agente do espetáculo é ele mesmo’ (Kehl, 2004, apud Cairoli & Gauer, 2009, p. 211).

Desde seu surgimento e expansão global em ritmo acelerado, a partir do princípio da década de 1990, a Internet tem sido apontada, por diversos autores, como espaço social com potencial para a revitalização do conceito de esfera pública (HABERMAS, 1962), nas bases propostas originalmente a partir do século XVIII (Carreiro, 2009, p. 1-2).

Sabe-se que qualquer pessoa deixa uma pegada, um rastro digital no texto eletrônico, ao interagir na e com as plataformas, mediadoras e qualificadoras de qualquer interação no ciberespaço coletivo. Mas não é este registro secreto, compulsório, oculto, passivo e persecutório de que é feita a cibercultura, muito pelo contrário, as plataformas são espaços regrados de jogo, mas jogos suficientemente complexos a ponto de permitir em sua estética uma liberdade estilística. A criatividade humana encontra fissuras no tecido digital e nessas brechas tece suas próprias narrativas. Nas tantas vitrines dos endereços web, emergem novas formas de sociabilidade e de fazer artístico, onde não raro a intimidade se torna espetáculo. Do olhar introspectivo ao olhar consumidor, ‘os novos gêneros confessionais da internet se apresentam como tentativas bem atuais de “recuperar o tempo perdido” na vertiginosa era do tempo real, da falta de tempo generalizada e do presente constantemente presentificado’ (Sibilia, 2016, p. 154). 

‘Se, portanto, os diários surgem como um modo de fortalecimento histórico para o indivíduo, os blogs são uma forma de anti-história, ou melhor, uma consequência do capitalismo tardio ou de consumo que nos encaminha para […] uma série de presentes perpétuos expostos à exaustão’ (Lima & Maciel, 2005, p. 16). É difícil pensar na internet hoje em dia sem considerar as influências e interesses corporativos e estatais que imprimem na mesma uma complexa subrede de vigilância, para além da vigilância cidadão-cidadão. Do ponto de vista corporativo, a vigilância serve majoritariamente a interesses econômicos, pautados na captura e venda da atenção humana, assim como dos dados de interação. Já do ponto de vista estatal, a ciberpolítica, a cibersegurança, o cibercrime, a ciberviolência e o ciberterrorismo se apresentam enquanto incomensuráveis focos atencionais. A atenção pública já não é mais oligopólio da imprensa.

O mundo evidencia uma realidade na qual muitas das informações circulantes são produzidas fora da mídia convencional, não mais mediadas por empresas tradicionais de comunicação, que reúnem jornais, emissoras de rádio e televisão e, mais recentemente, websites. No centro desta reflexão estão os blogs (Cunha, 2008, n.p).

A atenção então tornou-se esse grande ativo intangível ampla e profundamente cobiçado, evanescente. Nas ágoras das plataformas bloggers disputam, negociam, vendem, compram, dão, doam, oferecem e sequestram instantaneidades, numa lógica, numa retórica da atenção. ‘Sobretudo entre o público adolescente, os blogs são ao mesmo tempo, registro de atividades (como um diário convencional), livros de visitas (registram a passagem de públicos afins) e manifestações de exibicionismo competitivo’ (Lima & Maciel, 2005, p. 14). Os efeitos em rede e em cascata que atravessam o ciberespaço alterando sua paisagem, não são unicamente publicitários, mercadológicos, repressores e vigilantes, mas também críticos, criativos, artísticos e culturais.

Para educar não existe nada que não seja ou possa ser ferramenta de educação; a isso é chamado de oportunismo pedagógico ou pedagogia da oportunidade. Se uma instituição de ensino bloqueia o acesso ao Orkut, por exemplo, eu o transformo em oportunidade de aprendizagem (Santos, 2012, p. 4, grifo no original).

‘Neste ambiente cada vez mais complexo e de sobreadições, a reinvenção dos modelos é o resultado de uma história contada e recontada, na qual o leitor passa também a narrador’ (Cunha, 2008, n.p). Diversas pesquisas já investigam o fenômeno dos blogs, suas especificidades  e potências, tais como os eixos temáticos da literatura e pornografia (Lima & Maciel, 2005), jornalismo (Quadros, Rosa e Vieira, 2005; Lima & Maciel, 2005 e Cunha, 2008), adolescência (Cairoli & Gauer, 2009), cibercinefilia (Carreiro, 2009), comunidades virtuais de leitura e escrita (Luccio & Nicolaci-da-Costa, 2010), microblogging (Zago, 2010), corpos femininos volumosos (Godoi, 2011), vozes e mulheres indígenas (Ferreira, 2011 e Ferreira, 2015), pedagogia (Oliveira, Nogueira, Mendes e Martins, 2011; Santos, 2012 e Santos, 2017), divulgação científica (Sandrini, 2014), comunicação política (Serra, 2015), habilitação psicossocial (Bittencourt & Francisco, 2017), luto materno (Frizzo, Bousso, Ichikawa e de Sá, 2017), blogueiras negras (Silva, 2019), entre tantos outros. Há ainda inúmeros temas também de interesse investigativo que povoam a blogosfera, por exemplo, o esporte. Todavia, o investimento científico ainda falha em contemplar a ampla diversidade temática, identitária e estilística que se articula no interior dos blogs e em seus arredores. ‘Tanto os blogs quanto os diários são uma resposta às grandes narrativas legitimadoras, formas que parecem não encontrar mais lugar na contemporaneidade, como defende J. F. Lyotard’ (Lima & Maciel, 2005, p. 17). O descompasso entre ciência e vida social tende a aumentar exponencialmente com o advento de tecnologias comunicacionais emergentes e com o processo superfluido das (novas) redes sociais digitais. A cidadania planetária efetivada pelo comportamento blogueiro é um dos polos cruciais das disrupções na contemporaneidade.

Referências

Bittencourt, I. G. de S. & Francisco, D. J. (2017). Habilitação psicossocial de pessoas em sofrimento psíquico: um trabalho com produção de blog. Revista Estudos de Psicologia, 22(1), p. 61-67.

Cairoli, P. & Gauer, G. C. (2009). A adolescência escrita em blogs. Revista Estudos de Psicologia, 26(2), p. 205-213. Campinas.

Carreiro, R. (2009). História de uma crise: a crítica de cinema na esfera pública virtual. Revista Contemporânea, vol. 7, n. 2.

Cunha, M. R. da. (2008). Blogs: reinvenções em um cenário tecnológico. Revista Interin, v. 5, n. 1, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba.

Ferreira, G. C. (2015). Mulheres indígenas nos blogs: discursos e identidades. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Três Lagoas.

Ferreira, L. L. (2011). Vozes indígenas no ciberespaço: funcionamento discursivo de blogs. In: XVI Seminário de Teses em Andamento (SETA), Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

Frizzo, H. C. F.; Bousso, R. S.; Ichikawa, C. R. de F. e de Sá, N. N. (2017). Mães enlutadas: criação de blogs temáticos sobre a perda de um filho. Revista Acta Paul Enferm, 30(2), p. 116-21.

Godoi, M. R. (2011). Corpos femininos volumosos e estética: discursos contra-hegemônicos sobre beleza em blogs na internet. Revista Movimento, v. 17, n. 3, p. 153-173. Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Lima, E. L. F. & Maciel, S. D. (2005). Blogs e diários: do contemporâneo ao clássico. Revista Guavira Letras (RGL), n. 2, p. 12-21.

Luccio, F. di & Nicolaci-da-Costa, A. M. (2010). Blogs: de diários pessoais a comunidades virtuais de escritores/leitores. Revista Psicologia, Ciência e Profissão, 30 (1), p. 132-145.

Oliveira, G. F. de; Nogueira, M. A; Mendes, M. L. G. da C. e Martins, G. P. de C. (2011). Blogs na educação: análise do seu uso como ferramenta didático-pedagógica. In: SENACEM 2011 – I Seminário Nacional do Ensino Médio: História, Mobilização, Perspectivas,  p. 1385-1394. Rio Grande do Norte, Mossoró.

Quadros, C. L. de; Rosa, A. P. da e Vieira, J. (2005). Blogs e as transformações do jornalismo.  Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS), p. 1-21.

Sandrini, R. (2014). A dinâmica da divulgação científica em blogs de jornalistas e cientistas brasileiros. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Jornalismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

Santos, C. M. (2012). Patrimônio cultural, blogs e educação. Revista Tempo Histórico. v. 4, n. 1.

Santos, N. B. dos. (2017). Blogs em práticas poético-pedagógicas: desterritorializando memórias e figurações. Artefactum – Revista de Estudos em Linguagem e Tecnologia, ano IX – n. 2.

Serra, J. P. (2015). Os blogs como meios de comunicação política. Revista Novos Olhares, v. 4, n. 1, p. 150-164.

Sibilia, P. (2016). O show do eu – a intimidade como espetáculo, 2ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto.

Silva, T. P. da. (2019). Construções identitárias e TICS: o caso do blog “blogueiras negras”. Revista Extraprensa, v. 12, n. esp., p. 488-504. São Paulo.

Zago, G. da S. (2010). Dos blogs aos microblogs: aspectos históricos, formatos e características. Revista Interin, vol. 9, n. 1, 2010, p. 1-12. Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba.

Invenção, tecnologia e o papel do tecnólogo na cultura técnica segundo Simondon

Por Isabel Jungk

Gilbert Simondon, 1924-1989

[Abstract] “Invention takes place through a rearrangement of structures that does not occur by chance. The resulting technical object is an intermediary between the world and human beings that appears as the solution to a problem, constituting not only a simple transfer of physical forces, but a material fixation or crystallization of an effective gesture or procedure. In this way, every technical object is defined by a type of internal coherence in which there is a reciprocity of causal actions and of information exchange, with invention being an ontogenetic potency since it brings about an unprecedented independent being. Philosophical thought must integrate technical reality into culture, founding a technology understood as the study of technique that must perform a regulatory function between man and the world of technical objects. In this context, the technologist makes it possible to explain the true regulatory character of these human-technical relations, reintroducing into culture the awareness of the nature of machines, of their mutual relations and their relations with human beings, and of the values ​​implied in these relations so that this awareness functions as an adequate mediator of social relations.

Simondon é certamente o pensador da invenção e não da inovação, a palavra de ordem da tecnocracia contemporânea. Para Simondon, “a invenção é uma das grandes formas da função do novo no homem, ao lado da descoberta, motor das ciências e da criatividade” (apud CHATEAU, 2008, p. 65). A invenção, que pode ser estudada em diferentes domínios, especificamente técnicos ou não, como a filosofia, pode ser considerada essencialmente “um rearranjo de estruturas e de funções por encadeamento no tempo” (ibid.). Nesse sentido, há que se distinguir quando se trata verdadeiramente de invenção e quando se trata de uma simples expressão de criatividade. Segundo a perspectiva simondoniana, na invenção, esse remanejamento de estruturas não se faz ao acaso, mas como a resolução de um problema; por isso, as realizações técnicas, que sempre buscam resolver um problema, aparecem por invenção.

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Espectros Computacionais e suas possibilidades[1]


por Luiza Helena Guimarães


[Resumen] The project “Spectra Computational” is in its third version. They have as the thread of their poetics the images of human brains visualized in electromagnetic resonances that were subjected to data sonification. The digital art-science works incorporate aspects of neuroscience and the physics of digital signal processing that converge to form immersive environments for Virtual Reality (VR),  Panorama 360º and fulldome.

Apresentação

À medida que a arte contemporânea incorpora conhecimentos de outras áreas, ganha a possibilidade de existir mais próxima da imaginação. O projeto “Espectros Computacionais” está em sua terceira versão expositiva[1]. Apresenta um imaginário construído por meio de  tecnologias digitais e reúne os conhecimentos da arte e da estética aos conceitos científicos vindos da física de processamento de sinais e da neurociência. Nas exposição “Espectros Computacionais 360º/3D I” (EC360/I) mostramos uma instalação imersiva e um ambiente VR, em “Espectros Computacionais 360º/3D II” (EC360/II) desenvolvemos o conteúdo para apresentar em uma arquitetura de Panorama 360º, já em Espectros Computacionais_fulldome” o imaginário precisou acompanhar este diferente desafio para o cinema e a arte imersiva.

EC360/I foi produzido durante a residência artística (ArtSonica) no espaço de coworking do Oi Futuro (LabSonica), em 2018, e exibido no Centro Cultural Oi Futuro, em 2019, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Trata-se de um projeto transdisciplinar, imersivo e interativo, visual e sonoro, realizado a partir de imagens de cérebros humanos visualizados em ressonâncias eletromagnéticas de cérebros humanos. Apesar dos trabalhos terem iniciado em 2002, foi em 2018-19 que começou a ser realizado em equipe transdisciplinar integrada, desde a fase de projeto, por Ricardo Dal Farra[2] e, posteriormente, na fase de desenvolvimento de ambientes VR, incluímos Randolpho Julião[3]. A segunda versão EC360/II, continuou a mesma linha de pesquisas e desenvolvimentos, porém produzimos um ambiente imersivo gamificado voltado para a arquitetura de Panorama 360º existente no espaço da mostra “Panorama Exp”, Valencia, Espanha, 2021. Ainda neste ano, fizemos uma nova produção, Espectros Computacionais_fulldome“, para o Planetário Galileo Galilei eCentro Cultural San Martín, Buenos Aires, Argentina, em que mantivemos o mesmo imaginário e conceitos, entretanto, o roteiro e projeto gráfico foram totalmente remodelados em função dos software utilizados e do meio de exibição.

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Cômputo raro na Terra

por Alessandro Mancio de Camargo

[Abstract] In order to quit of any denials about climate change, how quantum computing can lead a new Earth beat? Based thereon, the posting remark technological products, such as those obtained from rare earth elements used as raw material in nanotechnological components, which are fundamental for the new data processing machines to solve in seconds, and not in years, complex climate problems.

O clima na Terra segue alterado de forma sem precedentes em milhares de anos na história da natureza, senão a centenas de milhares de anos. E algumas dessas mudanças postas em movimento – como o aumento contínuo do nível do mar – são irreversíveis ao longo das próximas centenas a milhares de anos [1].

O alerta faz parte de um primeiro rascunho do AR6 (Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) divulgado no início de agosto pelo IPCC. Publicado para discussão entre os formuladores de políticas públicas, o documento antecipa dados da versão final do trabalho, a ser divulgada em fevereiro de 2022.

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O Cântico dos Quânticos

por Marcelo Moreira Santos

[Abstract]: “The aim of this text is to explore the concept of consciousness from notions arising from Systems Theories, Peirce’s Semiotics and Lagarcha-Martínez’s Quantum Humanism. The aim is to probe the possibility of expanding this concept from the emerging synergistic complementarities and observe that consciousness is not something that belongs only to homo sapiens, it spreads through the ecosystem homeostasis existing in the cosmos.

Talvez você já tenha tido aquela experiência de olhar o firmamento e fazer certas perguntas que a humanidade se faz ao longo dos séculos diante de um cosmos prenhe de estrelas que dançam sobre as nossas cabeças como se tudo fosse tão magnificamente dosado que parece que o mistério e o milagre sejam as únicas respostas palpáveis a acalentar a nossa consciência.

Podemos cogitar que talvez os mistérios tenham o seu charme por não nos darem a segurança intelectiva que desejamos e é por isso que a vida não perde o seu brilho da manhã. O seu lugar de poesia. Por outro lado, ter a certeza dos milagres que nos cercam não deixa de nos fazer reconhecer o quão singular é a vida. O quão quântico é tudo que nos perfaz.

De fato, certos firmamentos nos fazem perceber o quão infinitesimal são as nossas reflexões a respeito do cosmos que nos cerca. Tateamos certas noções tentando pescar em nossas redes cognitivas alguns rincões de certeza, mas sabemos, que por mais que ousemos, algo sempre escorre pelos nossos dedos: o signo não consegue conter em suas cercanias o fogo-fátuo da vida. Alguma partícula sempre escapa aos nossos medidores interpretativos e, talvez, lidarmos com estas contingências nos liberte e nos aproxime de uma consciência, dita, quântica.

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