Um vírus é um zumbi

por Adriano Messias

[Abstract] “For some years, I have been developing a perspective that considers viruses closer to zombies. From the 2020 pandemic, I reorganized part my considerations to take them forward in a new breath discussing germs in a broad way and their impact on civilization. Unfolding my main axis, I also allude to the role of the media with regard to the imaginary and symbolic of the pandemic, discussing semiotic, epidemiological and anthropological approaches. My aim is to think how we could be more or less prepared to face pathogens from now on and how responsible we are whenever a pandemic strikes the planet.

Duas observações

Este texto é parte de um livro que está em processo de escrita. Fiz alguns recortes para fins desta publicação e deixo duas observações: 1) o termo SARS-CoV-2 provém do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave do coronavírus 2). Ainda assim, é bem comum que se trate o vírus pelo nome da doença (covid-19) e vice-versa. A importância da taxonomia para os vírus é que, com isso, se evitam preconceitos ligados às doenças: no início de 2020, o covid-19 foi chamado de “vírus chinês”. A sífilis já foi denominada de “pústula francesa”; a influenza aviária de 1918 permanece até hoje como “gripe espanhola”, enquanto a aids era a “doença gay” nos anos de 1980. 2) Quando surgiu a doença causada pelo “novo coronavírus”, o nome era uma sigla em que “Co” se referia a “corona”, “vi” a “vírus”, “d” a doença. O numeral sempre indica o ano em que a enfermidade aparece pela primeira vez. Então, a grafia obedecia à regra das siglas em língua portuguesa (de onde Covid-19, com maiúscula). Com o passar do tempo, porém, a mesma sigla passou a designar a doença causada pelo vírus e se tornou, por isso, substantivo comum (grafado com “c” minúsculo). O mesmo raciocínio se aplica a outras doenças e síndromes, como a aids que, nos primeiros anos, se escrevia Aids (cf. LESNEY, 2020).

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Brotam brotinhos na tarde feita
Só de suspiros:
O amor é um vírus…
Mário Quintana

1. Dando forma ao caos

Começo este texto salientando o valor icônico do signo no caso da veiculação mediática de imagens do covid-19. A mostração (e não demonstração) iconográfica, ilustrativa, geométrica e colorida do “novo” (agora já velho) vírus pelas variadas mídias é algo a ser considerado. Afinal, a rigor, pela física, os vírus sequer teriam cores. Para que alguém veja a cor de um quadro, por exemplo, a fonte de luz tem de incidir sobre ele, refletir-se, e depois atingir nossos olhos. A luz, entretanto, tem um comprimento muito grande para iluminar um vírus (ela varia de 380nm – no caso da violeta – até 750nm – para o vermelho). Um nm (nanometro) é uma medida que equivale a um metro dividido por um bilhão. Em um microscópio óptico, por exemplo, podem ser vistos objetos maiores do que 750nm. Porém, um coronavírus tem o tamanho de 100nm. Dessa forma, ele só pode ser “visualizado” em um microscópio eletrônico, que emprega a tecnologia da reflexão dos elétrons (que são muitíssimo menores, chegando a 0,00000001nm). São eles que permitem ao cientista “desenhar” a forma de um vírus.

Quanto à cor, ela se torna aleatória e vinculada à criatividade dos designers gráficos. Portanto, as imagens do coronavírus responsável pelo covid-19 que vimos em variados veículos da mídia foram obtidas por computação gráfica e, neste sentido, tornaram-se invenções, têm um caráter fictício. Isso já demonstra o enorme cabedal de imaginário que existe sobre os multiformes discursos que foram inferidos a respeito e a despeito do vírus da pandemia de 2020.

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Cultura e hipertelia do objeto técnico: Reconversão industrial em um mundo pandêmico e pós-pandêmico

Captura de Tela 2020-06-19 às 19.04.44

por Isabel Jungk

[Abstract]: “The economic crisis generated by the COVID-19 pandemic raised the issue of the need for industrial reconversion, which can be understood from the perspective of a new technical culture defended by Simondon and his concept of hypertelia, according to which, in new contexts,  technical objects tend to mismatch in relation to their excessive specialization in order to perform new functions. In a world marked by the relationship between man and his technical creations, in which, due to various biosocial factors, pandemics may be increasingly frequent and intense, a new consciousness and awareness regarding the design of machines and industries may emerge, with a view to making them more open and adaptable to frequent transformations.”

A contemporaneidade está marcada pela relação do homem com suas criações técnicas das quais dependem, em grande medida, as relações ambientais, sociais, econômicas e políticas. Com a crise sanitária desencadeada pelo surto do novo corona vírus em 2019, muitas indústrias foram levadas à chamada reconversão industrial. O conceito tem sido usado em diferentes contextos e, num primeiro momento, o fenômeno da reconversão significou modificar rapidamente o foco das plantas industriais para fazer frente à crise e atender às demandas crescentes de insumos hospitalares. Esse tipo de reconversão já é conhecido, e envolve a mudança produtiva orientada por transformações conjunturais que elevam a demanda por determinados produtos enquanto dura uma situação excepcional, como, por exemplo, a que é praticada por indústrias, tanto por iniciativa espontânea ou a pedido e até mesmo exigência do Estado, em países em situação de guerra que, para produzir equipamentos bélicos, deixam de fabricar itens de baixa ou nenhuma necessidade naquele período.

Com a Covid-19, uma verdadeira situação de guerra foi travada, e foram muitas as empresas que redirecionaram seus recursos técnicos e humanos para a fabricação de álcool gel, máscaras e respiradores, entre outros itens para o combate à pandemia. No Brasil podem ser citadas, entre outras, as iniciativas da metalúrgica Gerdau, que se dispôs a produzir 400 litros de álcool 70%; a Ford, que anunciou a produção de 50 mil máscaras de proteção facial; a Mercedes-Benz, que teve a iniciativa de testar, em parceria com o Instituto Mauá de Tecnologia e profissionais da área médica, um novo modelo de respirador utilizando peças da indústria automotiva; e a WEG, empresa de engenharia elétrica que firmou acordo a Leistung, empresa de equipamentos médico-hospitalares, para a produção de 500 respiradores, conforme Queiroz (2020). Continuar lendo

Pandemias, câmeras, replicantes, gaiolas-de-aço e o Vidro Azul do Visconde de Sabugosa

por Gustavo Rick Amaral

[Abstract]: “This text is a short essay on some of the philosophical issues surrounding the development of Artificial Intelligence and its relation to some new proposals in the field of ontology and epistemology, specifically those that come from the Speculative Realism movement. The main argument of this essay is directed at establishing the following thesis: the Speculative Realism movement is a contemporary philosophical response to a fundamental tension between the “iron cage” of the pos-Kantian dominant forms of epistemologies and the speculative freedom of the pre-Kantian metaphysics. This fundamental tension is not restricted to the realm of philosophical modern thought. It is constitutive of the historical-cultural process of modernization itself.”

 

Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo (…)
Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo

(Gilberto Gil musicando as saborosas
ficcionalidades imaginadas por Monteiro
Lobato na obra Sítio do Pica-pau Amarelo)

 

Para explicarmos algumas de nossas capacidades naturais, é bastante comum recorrermos a artefatos que inventamos: tratamos a percepção auditiva e visual, por exemplo, como se fosse um dispositivo de captação de som e imagem; lidamos com a memória como se fosse um artefato em que gravamos informações (incialmente, papiros, papéis e livros; mais recentemente, fitas, discos, etc.); consideramos o raciocínio e outras capacidades cognitivas superiores como se fossem operações realizadas por computadores e assim por diante. Quando, nas últimas décadas, surgiram dentro do campo das ciências cognitivas perspectivas teóricas centradas no corpo e na ação como a abordagem da cognição corporificada e a cognição situada, percebeu-se, desde então, um esforço para se evitar que as explicações do funcionamento da mente humana recorram a imagens de máquinas e outros sistemas não-orgânicos. Neste mesmo período, enquanto estas abordagens a respeito da cognição humana ganhavam terreno em seu campo científico, as pesquisas dentro da área da Inteligência Artificial avançavam a passos largos, o que vem nos levando aos poucos para a paradoxal situação em que artefatos humanos estão ficando cada vez parecidos com seus criadores. Este paradoxo é aparente. Ele deve se dissolver tão logo tenhamos enfraquecido definitivamente o dualismo cartesiano, fundante da modernidade filosófica e altamente influente ainda hoje na forma como falamos e pensamos a respeito da cognição humana.  E esse dia não está longe.

Aproveitemos estas linhas iniciais para chamar atenção do leitor para uma temática que atravessará todo este pequeno ensaio: parece haver uma mudança profunda no campo gravitacional dentro do qual giram todas as questões referentes à relação homem-máquina (criador-criatura) que nos colocamos atualmente juntamente com temas a elas intimamente relacionados (como emoção, percepção e cognição humanas, inteligência artificial, aprendizagem de máquinas, algoritmos, etc.). Se fecharmos o foco (para nos facilitar o entendimento) nos estudos da cognição humana, esta mudança profunda à qual nos referimos é a transição de um campo cujo centro gravitacional estava numa abordagem geral dualista para um campo cujo centro está localizado numa abordagem geral pragmática (aos fenômenos da cognição). O movimento específico dentro do campo das ciências cognitivas que agora testemunhamos de ascensão dessas abordagens centradas no corpo e na ação nos apresenta teses fundamentais e argumentações gerais em relação à cognição humana que foram antecipadas pelo pragmatismo, corrente filosófica inaugurada ao final do século XIX pelo filósofo e lógico norte-americano Charles Sanders Peirce.

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Inteligência Artificial e controle de pandemias: biopolítica digital e o fim da era do humanismo

por Paola Cantarini

[Abstract]: “In the era of the 4th industrial revolution or of the  industry 4.0, the use of artificial intelligence has become irreplaceable and with no chance of regression. We left the carbon era and entered the silicon era, we left the written language and entered the cyberoral language, with an increase in the intensity of technical interconnections of all species, with the danger of the loss of the social autopoiesis, and, therefore, of the substitution of beings humans by machines and robots, much more efficient and faster. A paradigm shift is even more urgent vis-à-vis the acceleration of time, with its illumination of all paradoxes. Time of digital biopolitics, the end of humanism (Achille Mbembe) and the raise of a suicidal state (Vladimir Safatle), hypermodernity and transhumanism. In an attempt to get rid of old age and death, we forget that we don’t even know how to live and die yet. With that we seek perfection, more beauty and more youth, and precisely the fragility of our human being will be missing, and with that exactly aren´t in danger the features that made us capable of the greatest wonders among with the worst horrors?

Vivemos na sociedade da informação, com excesso de informações e redução ou impossibilidade da comunicação e da utilização, até mesmo na esfera pública, de fake news; acreditamos em imagens técnicas que se afastam dos conceitos e da realidade, sem enxergar tal distanciamento. Distanciamo-nos de nós mesmos, em um labirinto em rota de colisão, deslocando do chão em busca do etéreo, em busca da liberdade sem limites, mas não temos mais como pousar, presos que estamos na pós-história e em prisões virtuais e digitais.

O mais recente uso da inteligência artificial, que vem se destacando em tempos de coronavírus, refere-se ao controle de pandemias, ao cumprimento pela população de medidas de quarentena, bem como ao monitoramento do surto e à aceleração de testes de medicamentos Há empresas e cientistas da computação como a Northeastern University, por meio da plataforma HEALTHMAP, que trabalham na área de vigilância global de doenças.

Em 31.03.2019, a empresa canadense Blue-Dot, utilizando-se de IA para revisar mídias e redes sociais, detectou a propagação de uma doença incomum na China, em Wuhan, antes mesmo das primeiras manifestações da ONU e da OMS. Tal vírus, que também poderia ser denominado de SARS 2 – Severe Acute Respíratory Syndrom – nada tem de novidade, sendo uma segunda variação do anterior SARS 1, surgido em 2003, não tendo os países aproveitado tal ocasião para estudar o então vírus desconhecido e tomar medidas protetivas ou realizar reformas estruturais imprescindíveis, como o aumento da proteção ambiental, redução do aquecimento global, proteção da Amazônia, melhora da condição de vida da população em estado de vulnerabilidade, redução do consumismo desenfreado e a reorganização da economia global de forma independente dos mecanismos de mercado. Continuar lendo