Tecnopolítica, dissonância e a perturbação da dúvida

por Tarcísio Cardoso

[Abstract]: “This text intends to begin by exploring the technopolitics of fake news in our rowdy context of the Coronavirus pandemic, especially problematic considering the attitude that denies scientific knowledge. Throughout some parables, the question of cognitive dissonance is presented. From this scenario, the philosophical question on doubt is posed. To present the relationship between the theme of dissonance and that of post-truth, I bring to the debate the recent book of Lee McIntyre (2018), and to address the theme of the attitude towards doubt, I discuss the ideas of the philosopher Charles S. Peirce (1877). It is expected that these ideas can contribute to the debate between science and denialism, in the context of so much unknowing caused by our unique social context.”

Tempos turbulentos, estes, em que reina o não saber, mesmo quando disfarçado de saber. No caso brasileiro, o medo da morte, a ameaça do vírus, a privação e a amargura do isolamento são temperados por nosso agônico cenário político. Em meio a tantas incertezas, manter a sanidade já é um mérito. Confinados, buscamos informações que possam subsidiar nosso entendimento de mundo e nos fazer vislumbrar luzes no fim da quarentena. Mas as próprias informações a que temos acesso, mediadas por camadas sociotécnicas, são excessivas, contraditórias, não vêm com mapas de interpretação e, como efeito, não produzem imagens muito acalentadoras. Pior, as informações que nos chegam são em grande parte pouco confiáveis, quando não falsas. Desse modo, a dúvida, esse estado psíquico inquietante, lugar em que impera o não saber em sua insistência, continua a única coisa certa. Perguntamo-nos, finalmente: que atitude tomar diante da insistente perturbação da dúvida? Continuar lendo

Humanidades digitais e agenciamento algorítmico

por Tarcísio Cardoso

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[Abstract]: “Many of us feel a presence of something in the digital culture as a potential sadism and harmful in the social, but from there to rate the internet like “so much free”, “so less controlled”, “the enemy of the good costumes” as if the “anonymity” was the “loss of authority” there is a big difference. Despite the fact that many users are on the world wide web, few of them understand the actors that support it. One of this actors is the Mr. Algorithm, this so less comprehended nonhuman actor that does so much mediations in the network. But society generally does not know much about him. The community of researchers in digital humanities, in turn, aims to understand its capacity to act in the network, composing what it calls socio-technical agency or technical mediation (Latour, 1994). In an attempt to contribute to bring one of the themes that digital humanities have studied  the agency of algorithms , this text seeks to consider this theme as one that can be considered as belonging to the philosophy and sociology of knowledge and technology. The question that motivates this text is: within the digital society, how can algorithms be characterized as knowledge machine?

Em tempos de pós-verdade, fake news, terraplanismo, narcisismo, bolhas e cultura do ódio, acontecimentos como o atentado de Suzano abalam nosso já estremecido tecido social fazendo-nos ver um cenário desolador, mas que, justamente por isso, demanda tratamento científico, filosófico e sociológico. Como jovens dos nossos tempos com dificuldade de socializar, de se relacionar, não só sentem-se excessivamente injustiçados ou angustiados, mas encontram na cultura da internet apoios tão obtusos para alimentar suas versões de vitimização e culpabilização do outro, aumentando suas próprias revoltas e conspirações? Como a cultura da conexão, do acesso à informação, da democratização é também a cultura da invasão, da intolerância e da conspiração?

Questões duras de serem encaradas. Como se não bastassem seus já suntuosos desafios, devemos lembrar que a proliferação de versões sobre esses fenômenos não está isenta, ela própria, de tratamentos conspiratórios. Muitos de nós sentimos a presença de algo na tecnologia digital a potencializar os efeitos sadios e danosos de dilemas humanos. Mas daí a taxar a internet como “livre demais”, “controlada de menos”, “inimiga dos bons costumes” porque o “anonimato” representaria uma “perda da autoridade”, já há uma grande distância. Até porque, apesar de muitos usuários interagirem pela rede mundial, poucos compreendem, de modo minimamente distanciado das conspirações comuns, os atores que a sustentam. Um destes atores é um tal Sr. Algoritmo, este tão falado e tão pouco compreendido ator não-humano que tantas mediações faz na rede e que tantas conspirações suscita na cultura. Sobre ele também a sociedade de modo geral pouco sabe. As pesquisas em humanidades digitais, por sua vez, esforçam-se por tratar a atuação dos algoritmos na rede a partir dos chamados agenciamentos sociotécnicos. Continuar lendo

Desencontros entre os realismos de Peirce e de Meillassoux

por Tarcísio Cardoso

[Abstract]:

“Will the sun rise tomorrow? This naïve question covers profound questions of philosophy, especially worked out by David Hume. Is it possible to ensure from the regular experiences of the past the need for a future event? What is the validity of this reasoning? What is the basis of human understanding if this type of inference is not valid? Problems like these represent the passage from metaphysical problems (which ask about what there is) to epistemological problems (that ask about the ways of access to what there is). The aim of this text is to retake this kind of metaphysical-epistemological question under the eyes of two philosophers who stand out in the discussions of this group: Charles S. Peirce and Quentin Meillassoux. It is interesting to return to the subject, already treated in the post of Gustavo Rick, of the distance between Peirce’s philosophical proposal (pragmatism) and Meillassoux’s (anti-correlationism), the latter, basis for the subsequent development of speculative realism. In the post mentioned, the distance between Peirce and Meillassoux was already clear (says Gustavo Rick: “Meillassoux’s anti-correlationist project is incompatible with Peircean philosophy”). Next, we will reflect a little more on such differences by asking for both philosophical systems what they would have to say about our certainty that the sun will be rise tomorrow.”

O sol nascerá amanhã? Essa pergunta ingênua encobre profundas questões de filosofia, especialmente bem trabalhadas por David Hume. É possível garantir a partir das experiências regulares do passado a necessidade de um acontecimento futuro? Qual a validade desse raciocínio? Qual a base do entendimento humano se esse tipo de raciocínio ampliativo não for válido? Problemas como estes representam a passagem de problemas metafísicos (que perguntam sobre o que há) a problemas epistemológicos (que perguntam sobre os modos de acesso ao que há). O objetivo deste texto é retomar esse tipo de questão metafísico-epistemológica sob o olhar de dois filósofos que se destacam nas discussões deste grupo: Charles S. Peirce e Quentin Meillassoux. Interessa-nos voltar ao tema, já tratado no post de Gustavo Rick, da distância entre proposta filosófica de Peirce (batizada por ele de pragmatismo) e de Meillassoux (batizada de anti-correlacionismo), esta última, base para o desenvolvimento subsequente do realismo especulativo. No post mencionado, já estava clara a distância entre Peirce e Meillassoux (diz Gustavo Rick: “o projeto anti-correlacionista de Meillassoux é incompatível com a filosofia peirceana”). A seguir, vamos refletir um pouco mais sobre tais diferenças perguntando para ambos os sistemas filosóficos o que eles teriam a dizer sobre nossa certeza de que o sol vai nascer amanhã.

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Tecnologia digital e episteme da mediação

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por Tarcísio Cardoso

Digital technology and mediation episteme

[Abstract]

“Since the first texts that inspired the philosophical movement that became known as speculative realism, one of the challenges that thinkers of this moviment assume seems to be the search for solutions to the obstacles promoted by contemporary philosophy (analytical and continental), especially the obstacles presented by philosophical binarism Implied in the pair of thought-being or subject-object. This search, in the view of the proponents, aims to give philosophy a capacity to reflect on the most current problems with which science and technology deals (MEILLASOUX, 2009). The purpose of this post is to reflect a little on technology, more specifically digital technology, in light of the concept of mediation proposed by contemporary thinkers such as Latour, Martino and Di Felice. The example of digital technology is a choice only partially arbitrary, since it seems to be the most paradigmatic example to identify some of the problems of the human-technical dualism. Not by chance, the digital has been recurring theme in this blog – see, for example, the recent posts of Gazoini (2016) and Camargo (2016). This text deals precisely with the relation between worldview and world experience, between episteme and culture in the universe of digital technologies.”

 

Desde os primeiros textos que inspiraram o movimento filosófico que ficou conhecido como realismo especulativo, um dos desafios que pensadores dessa corrente assumem parece ser o de buscar soluções aos entraves promovidos pela filosofia contemporânea (analítica e continental), em especial os entraves apresentados pelo binarismo filosófico implicado no par pensamento-ser ou sujeito-objeto. Essa busca, na visão dos proponentes, pretende conferir à filosofia uma capacidade para refletir sobre os problemas mais atuais com os quais lida a ciência e a tecnologia (MEILLASOUX, 2009). O objetivo deste post é refletir um pouco sobre a tecnologia, mais especificamente a tecnologia digital, à luz do conceito de mediação proposto por pensadores contemporâneos como Latour, Martino e Di Felice. O exemplo da tecnologia digital é uma escolha apenas parcialmente arbitrária, pois parece ser este justamente o exemplo mais paradigmático para identificar alguns dos problemas do dualismo homem-técnica. Não por acaso, o digital tem sido tema reincidente neste blog – ver, por exemplo, os recentes posts de Gazoini (2016) e Camargo (2016). Comecemos, portanto, com uma breve revisão histórica do que entendemos por cultura digital. Continuar lendo

Que ontologia dos objetos dispensaria os atores? Tópicos para o diálogo entre Latour e os realistas especulativos

por Tarcísio Cardoso

[Abstract]
“The main characteristic of the movement called speculative realism is its anticorrelationism approach. To Meillassoux, creator of the concept, correlationism would be a typical attitude of contemporary philosophy (both continental as analytical) to welcome and encourage the Kantian critique, and in particular the limit given by the Thought-Being binding. To reject the Kantian critique, speculative realists have found few reputed allies. One of them is the philosopher-anthropologist Bruno Latour, for whom Kant is visibly an opponent. However, Latour does not seem to agree with Meillassoux´s main project (the anticorrelationism), which is why we could hardly fit Latour as a member of speculative realism. The general proposal of that movement would be to encourage speculation in order to seek for a real detached from the subject, or in the attempt to map signals of a “being” beyond “thought”. For Latour, this labor turns out to frame them again in modern project, whereby it is possible to separate two spheres: subjects (society) and objects (nature). We can say that the thought of Latour moves away from Kantianism in a very particular way. Often, it is precisely the modern realism and the modern idealism that should be questioned for an analysis of “objects” and “facts.” To build his famous reading of modern philosophy, Latour seeks to complete a framework “modern-non-modern” which, once understood, can indeed be a good ally for the ideals of speculative realism. In order to contribute with this, we will resume here some of Latour’s ideas involved in his alternative to the modern philosophy”

A principal característica do movimento chamado realismo especulativo e que faz unir pensamentos tão diversos em um mesmo círculo está na noção de anti-correlacionismo. Para Meillassoux[1], criador de tal conceito, correlacionismo seria uma atitude típica da filosofia contemporânea (tanto continental quanto analítica) de acolher e fomentar a crítica kantiana, e em especial o limite dado pela vinculação pensamento-ser. Ao rejeitarem a crítica kantiana, os realistas especulativos têm encontrado poucos aliados de renome. Um deles é o filósofo-antropólogo Bruno Latour, para quem Kant é visivelmente um oponente. No entanto, Latour não parece concordar com o cerne da leitura de Meillassoux nem com seu projeto anti-correlacionista, motivo pelo qual dificilmente poderíamos enquadrar Latour como um realista especulativo propriamente dito. A proposta daquele movimento seria fomentar a especulação para buscar um real desvinculado dos sujeitos, na tentativa de mapear sinais de um “ser” para além do “pensamento”. Para Latour, assim como para Viveiros de Castro[2], tal empresa acaba por enquadrá-los novamente no projeto moderno, segundo o qual é possível separar as duas esferas: dos sujeitos (sociedade) e dos objetos (natureza). Continuar lendo

Latour é relativista e construtivista?

por Tarcísio Cardoso

Os textos desse grupo têm suscitado várias polêmicas. Sinal de progresso. Nada mais latouriano que atrelar o valor das palavras aos seus efeitos e tomar a relevância de um blog (espaço de intercâmbio de ideias) pela sua capacidade de incitar controvérsias. Desde que o pensamento de Bruno Latour foi associado com os nomes relativismo e construtivismo, não foram poucas as vezes em que tal leitura foi vista como polêmica. Eu mesmo vivencio controvérsias até hoje por conta de meras palavras(!). Nos debates relativos à minha própria pesquisa de doutorado, palavras são atores extremamente fortes e, a depender de como uma discussão for levada adiante, as polêmicas se acentuam de modo a suscitar batalhas quase homéricas. Não é meu intuito incitar a polêmica, mas as palavras de um pensador tão controverso quanto Latour já criam batalhas campais por si só. Continuar lendo

A tecnologia é nossa inimiga?

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por Tarcisio Cardoso

O filme “Transcendence – a revolução” representa um fracasso não só na carreira de Johnny Depp e na ficção científica hollywoodiana, mas também nas reflexões que se propõe a realizar e não consegue dar conta. A crítica tem sido implacável com o longa, que não conseguiu fazer sequer uma ficção com um sentido claro. Parece que, no meio de tanto assunto instigante (tecnologia, ativismo antitecnológico, questionamento de limites da inteligência artificial, singularidade/transcendência), o filme só conseguiu se fixar num apelo exageradamente tosco: “homens, parem de brincar de Deus”. Ao transformar a inteligência coletiva em monstro, comete ainda um erro dogmático anacrônico: propõe que seriamos mais felizes se os homens não buscassem transgredir aquilo que “lhes cabe”. Diante da imposição de tal axioma, parece oportuno perguntar novamente: seria a tecnologia inimiga da natureza humana? Por trás desse questão residem outras, ainda mais polêmicas: o homem, alguma vez, foi natural? O que seria o homem por ele mesmo? Continuar lendo

Rede, social e inteligência compartilhada

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por Tarcisio Cardoso

Quanto tempo passamos conectados por dia? A rede está em nossos celulares ou nós é que estamos na rede? Os dilemas do mundo conectado têm sido alvo de muitas críticas e rotulações, por vezes exageradas. O fato consumado é que por estarmos conectados, ou simplesmente “disponíveis” para a rede, somos pessoas diferentes, estranhas, às vezes dependentes da tecnologia e, certamente, somos cada vez mais difíceis de se entender. Uma série de estudos sobre as redes e as mudanças culturais podem nos ajudar, nesse caminho. Continuar lendo