As insólitas máscaras dos agenciamentos pandêmicos

por Márcia Fusaro

[Abstract] “A sign of concealment and mystery from the most remote ancestral rites, the mask was now reterritorialized planetarily as a sign of life and death in the complex current context, also becoming a character in this tragic pandemic theater that we are witnessing. When transformed into an object of mandatory use across the planet, the mask has transformed the pandemic event into a kind of theater that is sometimes tragic, other times tragicomic, or even absurd.

SERVATIS A PERICULUM, SERVATIS A MALEFICUM (2014). Foto: Saul Landell

A arte de interpretar deve ser também
uma arte de atravessar as máscaras,
e de descobrir quem se mascara e por que,
e com que sentido se conserva
uma máscara remodelando-a.

Gilles Deleuze

A famosa máxima de Ezra Pound de que “os artistas são as antenas da raça” (2002, p.77) continua, mais do que nunca, a se confirmar. Uma constatação mais recente, quase assombrosa, pode ser vista no trabalho do fotógrafo mexicano Saul Landell. Algumas de suas fotos feitas anos atrás e outras mais recentes, de 2019, parecem verdadeiras premonições sobre a pandemia de 2020. Solidão, isolamento, asfixia,  distanciamento marcado entre as pessoas, um professor usando máscara diante de uma lousa são alguns dos temas abordados pelo artista. A temerária máscara usada pelos médicos durante a Peste Negra, na Idade Média, eternizada em pinturas de Bosch e em gravuras medievais, reterritorializa-se na imagem com que se abre este ensaio, em pleno cenário desértico, pelo clique de Landell. Várias de suas composições se inspiram no surrealismo de Magritte. Outras lembram o olhar poético-cinematográfico de Tarkovski. O clique sinistro exibe mulheres, homens, crianças, além de bonecos, com os rostos cobertos por diferentes tipos de máscaras. Ao postar algumas dessas fotos nas redes sociais, após o início da pandemia, Landell começou a ser severamente criticado. Muitos o acusaram de insensível diante da tragédia planetária. O detalhe que tais acusadores ignoravam é que os cliques haviam sido registrados bem antes da pandemia, entre 2010 e 2019. Antena da raça.

IL MAESTRO (2017). FOTO: SAUL LANDELL

Signo de ocultação e mistério desde os mais remotos ritos ancestrais, a máscara se reterritorializa agora, planetariamente, como signo-limite de vida e morte no complexo contexto atual, transformando-se também em personagem neste trágico teatro pandêmico que ora testemunhamos. Transformado em obrigatório planeta afora, o uso da máscara tem transformado o acontecimento da pandemia em uma espécie de teatro às vezes trágico, outras vezes tragicômico, ou mesmo do absurdo. Este último, ressalte-se, em sentido literal, muito longe do salutar vanguardismo de um Beckett. Nesse teatro antropo-cênico de pandêmicos extratos, na linha daqueles mais cientes do trágico da coisa, e que se dispõem a viver a sério diante do risco, têm-se testemunhado, acima da máscara, olhos atentos, apreensivos, respeitosos diante do poder de ação do inimigo invisível. No outro palco, o do absurdo literal, apresentam-se os que, desmascarados, carregam, no seio da ignorância e da lamentável falta de empatia, olhares irônicos, indiferentes, bovinos. Nesse mesmo palco, diga-se de passagem, também marcam presença as máscaras tragicômicas a cobrir testas, queixos, pescoços, nucas.

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Inteligência artificial, (cons)ciência e poesia

por Márcia Fusaro

[Abstract]

“Will an artificial intelligence be capable of creating poetry at the height of the innovative sophistication of great poets? Maybe it’s just a matter of time before this is possible. But faced with this possibility, what would be the terms used to recognize a great poetic creation originated by an artificial intelligence? Where to identify the creative, innovative leap that would characterize it as great art?”

 

marcia1

 

linguagem: minha
consciência (um paralelograma
de forças não uma simples
equação a uma
única
incógnita): esta
linguagem se faz de ar
e corda vocal
a mão que intrinca o fio da
treliça / o fôlego
que junta esta àquela
voz: o ponto
de torção
trabalho diáfano mas que
se faz (perfaz) com os cinco
sentidos

(…)

mas vi tudo isso
tudo isso e mais aquilo
e tenho agora direito a uma certa ciência
e a uma certa impaciência
por isso não me mandem manuscritos datiloscritos telescritos
porque sei que a filosofia não é para os jovens
e a poesia (para mim) vai ficando cada vez mais parecida
com a filosofia
e já que tudo afinal é névoa-nada
e o meu tempo (consideremos) pode ser pouco
e só consegui traduzir até agora uns duzentos e setenta versos
do primeiro canto da Ilíada
e há ainda a vontade mal-contida
de aprender árabe e iorubá
e a necessidade de reunir todas as forças disponíveis
para resistir a mefisto e não vender a alma
e ficar firme
em posição de lótus
enquanto todos esses recados ambíguos (digo: vida)
caem na secretária eletrônica 

Haroldo de Campos

 

Seria uma inteligência artificial (IA) capaz de criar poesia à altura da sofisticação de um Haroldo de Campos? De um Octavio Paz, Mallarmé, Ezra Pound, Maiakóvski, Borges, Fernando Pessoa e outros tantos poetas imensos? Seria uma IA capaz de criar, como Haroldo em plena maturidade poética, uma obra magistral como Galáxias (2004) ou A Máquina do Mundo Repensada (2000), onde, em terza rima dantesca, o poeta lança-(se)-nos em vertiginosa viagem de fecundo diálogo poético-físico-cosmológico com Dante, Camões, Drummond? Continuar lendo

Números não mentem: pequeno ensaio sobre os limites da verdade científica

aperto_de_mao

por Daniele Fernandes

[Abstract]

“This post aims to investigate the limits of scientific knowledge, by questioning if science’s point of view is the only way of knowledge that should be authorized. This is accomplished by analyzing some examples of everyday reality, which confront the view of mathematics and the so-called hard sciences with the point of view of the humanities, especially that of philosophy. To support the hypothesis that the scientific approach is not sufficient to explain all the aspects of reality – although the humanities may eventually lack for a specific rigor -, the theoretical basis is the definition of Peirce’s pragmatic method and the distinction between philosophy, art and science developed by Deleuze and Guattari. It is hoped to point out ways that help to solve the impasse created by technologies such as artificial intelligence, in relation to the role of human thought in general, and of philosophical thought in a specific way.”

Números não mentem. Essa máxima, geralmente enunciada por matemáticos, físicos, engenheiros etc., talvez seja a forma mais concisa de argumentar em favor da capacidade científica para atingir a verdade. E não há como negar essa afirmação. Ela se baseia na autoconsistência da matemática, a mais abstrata das ciências. Mas a veracidade dos números reflete a das teorias comprovadas pelas demais ciências. Seus modelos resistem a testes empíricos, isto é, funcionam, quando confrontados com a realidade. Entretanto, a questão aqui não é se essas teorias mentem ou não, se funcionam ou não; mas se o ponto de vista específico da ciência é suficiente para abranger todos os aspectos da realidade. Em outras palavras, se ela é a única forma de conhecimento que deve ser autorizada.

Se a questão parece absurda para alguns, é bom lembrar que há cientistas de renome internacional, inclusive, que seguem na direção de uma autossuficiência científica. Vamos tomar o caso específico da filosofia neste post. Só para dar um exemplo recente, António Coutinho, um importante e talentoso cientista português, afirma em entrevista que, excetuando-se a ciência, “todo o resto da atividade humana não progride. (…) Por isso filosofia não é ciência, porque nunca progride”. Diz ainda ter “o maior respeito pelos filósofos porque o objetivo da filosofia é o mesmo que o da ciência: explicar o mundo e a nós próprios” Mas que os cientistas têm “um bom processo e eles [os filósofos] não têm, portanto, estão fadados a desaparecer. O que é o objetivo da filosofia vai ser resolvido pela ciência, e a filosofia vai passar para a história.” O objetivo da ciência e da filosofia pode até ser o mesmo e a realidade, sem dúvida, é a mesma; mas as explicações são outras, porque as questões e os aspectos da realidade que são abordados por elas são distintos. Continuar lendo

O que você chama de filosofia?

por Daniele Fernandes

[Abstract]:

“This post aims to demonstrate, by everyday examples, the urgent need to understand the specificity and importance of philosophy, how it can influence different social groups and different aspects of life in society. In order to achieve this aim, we try to make a philosophical analysis of the main elements present in what we call “everyday facts”, using Deleuze and Peirce as theoretical foundations. As a result, here is produced an outline of what we would characterize as an assemblage contrary to philosophy.”

abacaxi_arteFoto: Ruairi Gray/Twitter

Neste post, gostaria de partir não dos conceitos, como geralmente faço, mas da descrição de alguns “fatos cotidianos”, alguns deles largamente divulgados nas redes sociais e na grande mídia. Também não vou falar do realismo especulativo, tema deste blog. Mas vou falar de algo ainda mais básico: da própria filosofia. Essa postura surgiu de uma vivência que me fez sentir a necessidade urgente de que se compreenda minimamente a especificidade e a importância da filosofia para todos os estratos da sociedade. Com “estratos”, quero dizer, classes sociais, níveis de escolaridade, faixas etárias, instituições, profissões etc. Vamos, então, aos tais “fatos cotidianos”.

FATO 1: Não faz muito tempo, em 2014, uma questão de uma prova de filosofia do ensino médio, aplicada em uma escola pública de Brasília, causou grande polêmica, tanto nas redes sociais, quanto na grande mídia brasileira. A questão, formulada por um professor de filosofia, mencionava a funkeira Valesca Popozuda como uma “grande pensadora contemporânea”, título que a própria funkeira recusou prontamente, quando ficou sabendo da polêmica, mesmo dizendo sentir-se honrada com ele. Procurado pela mídia, o professor de filosofia disse, dentre outras coisas, que queria mesmo gerar polêmica, que a imprensa só aparecia quando algo ruim acontecia, que a sociedade era preconceituosa, dado que se fosse o Mc Catra (outro funkeiro) ou alguém da MPB, talvez não tivesse havido tanta polêmica, que, por ser funkeira e mulher, as pessoas colocavam a cantora como alguém que não poderia pensar etc. Continuar lendo

Realismo Especulativo vs. Deleuzeanismo: reflexões sobre a arte

por Márcia Fusaro

Speculative Realism vs. Deleuzeanism: reflections on art

[Abstract]

“Deleuze devoted a major part of his philosophy and reflections to art. He is acknowledged to have been a major influence upon speculative realism. In this work I propose certain reflections on possible proximities to, and distances from, art as seen by Deleuze – the result of inchoate dynamic interactions between affects and percepts – and art as seen by twenty-first-century speculative realists, above all Graham Harman, one of the founders of the movement, and Timothy Morton, alongside Harman, one of the best-known thinkers in the movement in its connections to contemporary art.”

Untitled1Our Product – Pamela Rosenkranz (Bienal de Veneza, 2015)
Untitled2Nebulosa do Véu – Imagem do Telescópio Hubble (NASA)

Desde que tomei contato com a proposta filosófica do Realismo Especulativo, tenho me interessado em saber como esse novo movimento considera a arte. Afinal, como entender a arte para além da manifestação do binômio sujeito-objeto? As artes contemporâneas & o realismo especulativo, publicação de Lucia Santaella, postada em 26 de abril de 2016, aqui no Transobjeto, trouxe algumas luzes sobre essa abordagem, da qual parto para outras reflexões. Continuar lendo

O autômato de Kempelen, a máquina de Deleuze, o ciborgue de Lacan e o robô de Freud

por Adriano Messias

“(…) toute machine est machine de machine.”
(Deleuze e Guattari, L’Anti Oedipe)

“De repente seu corpo se esburacou feito um queijo suíço. Abriram-se grandes vãos, e deles saltitavam pequenos parafusos, fios coloridos, chips, eletrodos, graxa, fluidos, pequenos zumbidos. Recolhi as pecinhas caídas, montei com elas trenzinhos, maquininhas inúteis, daquelas de Tinguély que admirávamos juntos. (…)

Como sempre, nunca sei onde estou eu ou você, sempre disse que ser uma pessoa é algo duvidoso, não temos certeza alguma de que somos pessoas, somos uma corrente de ar, um vento, uma hora do dia, um riacho, uma batalha, um tique, um charme….”
(Peter Pal Pébart, Filosofia aos Suínos)

La Fontaine, Niki de Saint Phalle e Jean Tinguély, pátio lateral do Centre Georges Pompidou, ParisFigura 1: La Fontaine, Niki de Saint Phalle e Jean Tinguély,
pátio lateral do Georges Pompidou, Paris.

I

Ora pela ansiedade, ora pela euforia, desde o século XVIII, notadamente, tem-se visto a ascensão da máquina como especial companheira do humano. De forma sumária, as máquinas automáticas que conhecemos hoje podem se dividir em três tipos: as cinéticas, que se movem sozinhas, as cibernéticas, capazes de conduzir a si mesmas e demonstrar comportamentos semelhantes aos de seres vivos, e os computadores, hábeis em representar o mundo a partir de operações numéricas. Continuar lendo

Para além do peso e da leveza do assombro na era digital

por Márcia Fusaro

“Um pouco de possível, senão eu sufoco…”. Esta frase, mencionada por Deleuze (1992, p. 131), teria sido um desabafo de Foucault em um momento de crise revisionista conceitual de sua obra, quando, em uma segunda instância de produção acadêmica (a primeira se direcionara ao saber), Foucault percebeu a ironia de seu rumo filosófico voltado obcecadamente para aquilo que ele mais detestava: o poder. Durante a crise, “sufocado” pela intensidade com que se voltara para esse tema, buscou oxigenação intelectual ao se perguntar se, afinal, não haveria nada para além das relações de poder. Após oito anos sem escrever, encontrou então uma resposta no sujeito em ação nas instâncias de poder (subjetivação), tese a partir da qual redirecionou seu leme filosófico no derradeiro momento de sua obra. Continuar lendo

A ontologia Deleuzeana e o realismo especulativo

por Daniele Fernandes 

Uma mesma voz para todo múltiplo de mil vias, um mesmo Oceano para todas as gotas, um só clamor do Ser para todos os entes. Mas à condição de ter atingido, para cada ente, para cada gota, e em cada via, o estado de excesso, isto é, a diferença que os desloca e os disfarça, e os faz retornar, girando sobre a sua ponta móvel. (Deleuze, 2000, p. 477-478)

Neste artigo, temos o objetivo de realizar apontamentos sobre alguns dos conceitos da ontologia de Gilles Deleuze que influenciam o realismo especulativo, especialmente a Onto-cartografia de Levi Bryant e a Ontologia Orientada aos Objetos de Graham Harman. Exploramos a postura deleuzeana em relação aos conceitos de substância, indivíduo, ente, sujeito, objeto, máquina e agenciamento. Ao longo do artigo ainda pretendemos apontar algumas conexões com a obra de Peirce. Continuar lendo