Trocando ideias – Conversação entre Lucia Santaella e Gustavo Rick

por Lucia Santaella e Gustavo Rick Amaral

[Abstract] “After eight years of existence of the research group Transobjeto, the dialogue between Lucia Santaella and Gustavo Rick do Amaral offers a brief critical review of these years of research.
The group was born under the effect of the international repercussion that the philosophical movement, under the name of Speculative Realism, was causing at those years.
The intention was to confront the realism proposed by the authors with Peirce’s realism.
The group did not rush into the confrontation. Years of study were dedicated to the various authors of the ER.
After this stage, maturity was acquired for a well-founded assessment of this philosophical movement. This is what Santaella and Amaral’s brief informal dialogue is about.

 

Caro Gustavo,

Seu texto no Transobjeto, “Pandemias, câmeras, replicantes, gaiolas-de-aço e o Vidro Azul do Visconde de Sabugosa”, publicado em 1 junho, 20, que só pude ler hoje, está espetacular.

Muitas coincidências de pensamento com o livro que estou escrevendo e que, certamente, citará muito seu texto.

Juro que é pena estar em um blog.

Há textos tão complexos que têm que ser publicados em outro lugar, ou seja, um meio mais sofisticado.

Mas, ao fim e ao cabo, parece até melhor termos mesmo o nosso reduto secreto. Aliás, o TO nasceu da Vida Secreta dos Objetos. Hoje se transformou na vida secreta do pensamento fértil que tratamos de alimentar no comum que criamos. Continuar lendo

Pandemias, câmeras, replicantes, gaiolas-de-aço e o Vidro Azul do Visconde de Sabugosa

por Gustavo Rick Amaral

[Abstract]: “This text is a short essay on some of the philosophical issues surrounding the development of Artificial Intelligence and its relation to some new proposals in the field of ontology and epistemology, specifically those that come from the Speculative Realism movement. The main argument of this essay is directed at establishing the following thesis: the Speculative Realism movement is a contemporary philosophical response to a fundamental tension between the “iron cage” of the pos-Kantian dominant forms of epistemologies and the speculative freedom of the pre-Kantian metaphysics. This fundamental tension is not restricted to the realm of philosophical modern thought. It is constitutive of the historical-cultural process of modernization itself.”

 

Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo (…)
Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo

(Gilberto Gil musicando as saborosas
ficcionalidades imaginadas por Monteiro
Lobato na obra Sítio do Pica-pau Amarelo)

 

Para explicarmos algumas de nossas capacidades naturais, é bastante comum recorrermos a artefatos que inventamos: tratamos a percepção auditiva e visual, por exemplo, como se fosse um dispositivo de captação de som e imagem; lidamos com a memória como se fosse um artefato em que gravamos informações (incialmente, papiros, papéis e livros; mais recentemente, fitas, discos, etc.); consideramos o raciocínio e outras capacidades cognitivas superiores como se fossem operações realizadas por computadores e assim por diante. Quando, nas últimas décadas, surgiram dentro do campo das ciências cognitivas perspectivas teóricas centradas no corpo e na ação como a abordagem da cognição corporificada e a cognição situada, percebeu-se, desde então, um esforço para se evitar que as explicações do funcionamento da mente humana recorram a imagens de máquinas e outros sistemas não-orgânicos. Neste mesmo período, enquanto estas abordagens a respeito da cognição humana ganhavam terreno em seu campo científico, as pesquisas dentro da área da Inteligência Artificial avançavam a passos largos, o que vem nos levando aos poucos para a paradoxal situação em que artefatos humanos estão ficando cada vez parecidos com seus criadores. Este paradoxo é aparente. Ele deve se dissolver tão logo tenhamos enfraquecido definitivamente o dualismo cartesiano, fundante da modernidade filosófica e altamente influente ainda hoje na forma como falamos e pensamos a respeito da cognição humana.  E esse dia não está longe.

Aproveitemos estas linhas iniciais para chamar atenção do leitor para uma temática que atravessará todo este pequeno ensaio: parece haver uma mudança profunda no campo gravitacional dentro do qual giram todas as questões referentes à relação homem-máquina (criador-criatura) que nos colocamos atualmente juntamente com temas a elas intimamente relacionados (como emoção, percepção e cognição humanas, inteligência artificial, aprendizagem de máquinas, algoritmos, etc.). Se fecharmos o foco (para nos facilitar o entendimento) nos estudos da cognição humana, esta mudança profunda à qual nos referimos é a transição de um campo cujo centro gravitacional estava numa abordagem geral dualista para um campo cujo centro está localizado numa abordagem geral pragmática (aos fenômenos da cognição). O movimento específico dentro do campo das ciências cognitivas que agora testemunhamos de ascensão dessas abordagens centradas no corpo e na ação nos apresenta teses fundamentais e argumentações gerais em relação à cognição humana que foram antecipadas pelo pragmatismo, corrente filosófica inaugurada ao final do século XIX pelo filósofo e lógico norte-americano Charles Sanders Peirce.

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Desafios: razão e realidade

Resenha crítica do livro Os avanços da ciência podem acabar com a filosofia?, de Ronaldo Marin e Gustavo Rick Amaral. Coordenação Lucia Santaella. Estação das Letras e Cores.

os_avancos

Por Christiane Wagner[1]

[Abstract]: “This review, in addition to an informative summary of the book’s content, proposes an analysis of the philosophical and scientific approach, with attention to aesthetic reflection nowadays. Thus, ontologically and epistemologically, the complexity of the subject in question is approached. It is also contemplated that the philosophical notion of freedom that is as old as the art concerning human existence. Thus, free will is considered as the potency of freedom by the principles of Cartesian philosophy, which would not be possible without an orientation based on knowledge for decisions, considering the criteria of truth for the affirmation of technique and science. What is intended is a review with aesthetic reflection to situate ourselves about the sensitive aspects of our existence in a critical way to Cartesian rationalism, precisely because aesthetic considerations were not appropriate for the Cartesian subject. Finally, this critical review reflects on the main question of the book, that is, its consequences in the face of Cartesian doctrine and the controversies surrounding the notion of freedom, its reflexes in the arts and culture.”

Os desafios de nossa inteligência em busca de mais conhecimento nos condicionam a rever os principais valores da cultura ocidental. Embora o homem tenha adquirido sua autonomia no mundo moderno, orientado pela ética ou pelos preceitos da moral para a sua existência, sempre houve resistência aos novos valores. Alguns ideais estiveram em evidência, como a liberdade, e foram expressos na história da humanidade por meio da filosofia, das artes e da política. Algo essencialmente humano. Mas o entendimento de nossa realidade, da civilização ocidental nesses últimos 2.500 anos, é orientado pelo fenômeno natural e racional – surgiram a filosofia e a ciência –, e não mais pelos mitos (RAMPNOUX, 2008).  Desde então, pela ideias de grandes pensadores, primeiramente os filósofos e depois os cientistas, chegamos ao século XXI e, antes mesmo da certeza de nosso aprendizado, nos deparamos com muitas incertezas diante da experiência do novo que ocupa todos os aspectos da vida cotidiana, transformando nosso dia a dia antes mesmo que ele possa apresentar suas realizações concretas. Nesse sentido, o cientista Ronaldo Marin e o filósofo Gustavo Rick Amaral unem seus conhecimentos para responder ao leitor quanto ao papel da ciência e da filosofia diante de um terceiro grande desafio que já está revolucionando o conhecimento. Continuar lendo

A leitura “espacializante” de Meillassoux da metáfora kantiana da revolução copernicana

por Gustavo Rick Amaral

[Abstract]:

“The main objective of this text is to present a study on the Meillassoux analysis of the Kantian metaphor or analogy of Copernican revolution. In his analysis (presented in the book “after finitude” Meillassoux focus on the spatial relation involved in this Kantian metaphor or analogy. This particular focus is part of a strategy (common to all others philosophers of Speculative Realism) to present Kant as a philosopher who contributed greatly to the anthropocentrism in the modern era. In this paper, we sustain that the Kantian (Copernican) revolution in epistemology represents a philosophical trend that strives to combat anthropocentrism. The Kantian metaphor or analogy can be read in this same key.”

Na obra “depois da finitude”, Meillassoux (2008) introduz o termo correlacionismo para designar a tradição filosófica que limitou o pensável, o cognoscível ao campo do que poder ser correlacionado à experiência (possível) do sujeito. Do ponto de vista dos filósofos do Realismo Especulativo (RE), sobretudo, Meillassoux, o correlacionismo fundamental é estabelecido por Kant na Crítica da Razão Pura. Para os realistas especulativos, a crítica kantiana (no campo da epistemologia) é o pecado original da filosofia. Em “depois da finitude”, Meillassoux desenvolve uma análise da célebre metáfora da revolução copernicana à qual recorreu Kant no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura. Kant entende que a tarefa de sua crítica no campo da epistemologia é promover um movimento de inversão semelhante àquele operado por Copérnico no campo da ciência. Acreditamos que a análise de Meillassoux desta metáfora é uma excelente síntese de um movimento geral central ao RE: a crítica ao correlacionismo (ou ao que Harman denomina “filosofia do acesso).

A tese principal da análise de Meillassoux é que a revolução copernicana de Kant é, na verdade, uma contra-revolução ptolomaica (2008, p. 118). A revolução de tipo copernicano operada por Kant no campo da epistemologia é, na verdade, uma revolução de tipo ptolomaico operada (neste campo) contra a verdadeira revolução copernicana feita no campo científico. Esta tese que considera ptolomaico o movimento operado pela crítica kantiana está associada a uma das principais teses de Meillassoux nesta obra, saber, a ideia de que a ciência possui um “modo não-correlacional de conhecimento”, ou seja, um caráter eminentemente especulativo (2008, p. 119).

A revolução copernicana no campo científico é entendida como um descentramento. A contra-revolução ptolomaica no campo epistemológico é entendida como um centramento. Nesta, os objetos passam a orbitar o sujeito. Continuar lendo

Quentin Meillassoux, Donald Trump, Elvis Presley e o playground da pós-verdade

por Gustavo Rick Amaral

Quentin Meillassoux, Donald Trump, Elvis Presley and the post-truth playground 

[Abstract]
“The objective of this paper is to compare the speculative realism introduced by the French philosopher Quentin Meillassoux in the book “After Finitude” and the kind of realism defended by Charles S. Peirce. The role phenomenology and semiotics have in the Peirce’s philosophical system makes the peircean realism totally incompatible with the speculative realism. The reason is that the anti-correlationist position of Meillassoux is at odds with some basic peircean thesis (like “all thoughts is in signs” – CP 5.253 [1868]).  This comparative study is followed by a description of some elements of the historical (cultural and political) context in which the Meillassoux philosophical project arise
.”

Na obra “Depois da infinitude”, o filósofo francês Quentin Meillassoux (2008) nos apresenta um projeto filosófico cujo ponto central é a reabilitação da distinção entre qualidades primárias e secundárias associado ao objetivo de estabelecer a tese segundo a qual a contingência seria o único princípio absolutamente necessário no universo. No presente artigo, não pretendemos desenvolver uma análise dos argumentos do filósofo e apresentar uma refutação de suas teses. Fosse esse nosso objetivo, acreditamos que um bom começo seria questioná-lo a respeito do problema de auto-referencialidade envolvido na sustentação do princípio acima anunciado. Se o princípio for um pensamento ou uma proposição, seria ele mesmo contingente, i.e., estaria ele mesmo submetido ao princípio (cf. o que Ray Brassier chamou de paradoxo da contingência absoluta – Brassier, 2007, p. 85)? O objetivo deste artigo é fazer, em primeiro lugar, uma comparação de diretrizes e características gerais do realismo especulativo de Meillassoux e da filosofia peirceana (para demonstrar a incompatibilidade entre as duas filosofias) e, em segundo lugar, uma contextualização (no cenário político e cultural contemporâneo) das instigantes propostas teóricas do filósofo francês. Comecemos com um trecho da obra “Depois da Finitude” em que Meillassoux apresenta a tarefa do realismo especulativo. Continuar lendo

Estão chegando os alquimistas semânticos

por Gustavo Rick Amaral

Neste texto, pego carona mais uma vez em temas tratados por Tarcísio em seu post (“Latour é relativista e construtivista?”).  Na verdade, mais do que uma carona. Utilizei as análises elaboradas por Tarcísio para tentar entender o que nos textos de Latour não está muito claro (ao menos para mim). Neste meu texto, pretendo focalizar nalguns aspectos terminológicos, linguísticos das reflexões epistemológicas apresentadas por Latour,sobretudo, em “Ciência em ação” e “Jamais fomos modernos”. Comecemos por esta última obra. Ao ler este livro, tive a nítida impressão de que Latour quer nos provocar com sua escolha de palavras (para nomear suas conceituações). Universalismo particular? Relativismo universal?  (cf. diagramas – Latour, 1994, p. 103). Pode isso, Arnaldo? Como veremos, a regra não é clara. Aliás, talvez nem haja regra alguma. Continuar lendo

Coca-cola, Fanta, Peirce, Latour, meu sapato e política

por Gustavo Rick Amaral

Não pude deixar de reparar que o objetivo do grupo é traçar uma correlação entre o que vem sendo denominado de realismo especulativo e o realismo peirceano. Também não pude deixar de notar que a teoria ator-rede do sociólogo e filósofo francês Bruno Latour está bem presente nos últimos posts feitos por membros do grupo e parece estar na base de algumas teses muito relevantes para o realismo especulativo. Feitas estas observações, gostaria de expressar minha satisfação com um termo específico que foi escolhido para figurar no nome do grupo: confronto. Pelo que li dos posts anteriores, creio que tivemos dois textos fundamentais para que seja feita qualquer comparação entre Peirce e Latour. Continuar lendo

Questões concernentes a algumas faculdades reivindicadas pelo homem do século XXI

por Gustavo Rick Amaral

Breve introdução

De carona no tema levantado pelo último texto, “Rede social e inteligência compartilhada” (de Tarcísio), permitam-me introduzir um pouco de ceticismo nas discussões do grupo.

Das várias ideias que pululam e se espalham como memes (ou quem sabe gremlings) pelas discussões acerca da revolução ocasionada pela internet, duas conseguem captar minha atenção (ainda que por motivos opostos): o tal cérebro multitarefa e a tal inteligência coletiva. Continuar lendo