Pandemias, câmeras, replicantes, gaiolas-de-aço e o Vidro Azul do Visconde de Sabugosa

por Gustavo Rick Amaral

[Abstract]: “This text is a short essay on some of the philosophical issues surrounding the development of Artificial Intelligence and its relation to some new proposals in the field of ontology and epistemology, specifically those that come from the Speculative Realism movement. The main argument of this essay is directed at establishing the following thesis: the Speculative Realism movement is a contemporary philosophical response to a fundamental tension between the “iron cage” of the pos-Kantian dominant forms of epistemologies and the speculative freedom of the pre-Kantian metaphysics. This fundamental tension is not restricted to the realm of philosophical modern thought. It is constitutive of the historical-cultural process of modernization itself.”

 

Marmelada de banana, bananada de goiaba
Goiabada de marmelo (…)
Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente
O sol nascente é tão belo

(Gilberto Gil musicando as saborosas
ficcionalidades imaginadas por Monteiro
Lobato na obra Sítio do Pica-pau Amarelo)

 

Para explicarmos algumas de nossas capacidades naturais, é bastante comum recorrermos a artefatos que inventamos: tratamos a percepção auditiva e visual, por exemplo, como se fosse um dispositivo de captação de som e imagem; lidamos com a memória como se fosse um artefato em que gravamos informações (incialmente, papiros, papéis e livros; mais recentemente, fitas, discos, etc.); consideramos o raciocínio e outras capacidades cognitivas superiores como se fossem operações realizadas por computadores e assim por diante. Quando, nas últimas décadas, surgiram dentro do campo das ciências cognitivas perspectivas teóricas centradas no corpo e na ação como a abordagem da cognição corporificada e a cognição situada, percebeu-se, desde então, um esforço para se evitar que as explicações do funcionamento da mente humana recorram a imagens de máquinas e outros sistemas não-orgânicos. Neste mesmo período, enquanto estas abordagens a respeito da cognição humana ganhavam terreno em seu campo científico, as pesquisas dentro da área da Inteligência Artificial avançavam a passos largos, o que vem nos levando aos poucos para a paradoxal situação em que artefatos humanos estão ficando cada vez parecidos com seus criadores. Este paradoxo é aparente. Ele deve se dissolver tão logo tenhamos enfraquecido definitivamente o dualismo cartesiano, fundante da modernidade filosófica e altamente influente ainda hoje na forma como falamos e pensamos a respeito da cognição humana.  E esse dia não está longe.

Aproveitemos estas linhas iniciais para chamar atenção do leitor para uma temática que atravessará todo este pequeno ensaio: parece haver uma mudança profunda no campo gravitacional dentro do qual giram todas as questões referentes à relação homem-máquina (criador-criatura) que nos colocamos atualmente juntamente com temas a elas intimamente relacionados (como emoção, percepção e cognição humanas, inteligência artificial, aprendizagem de máquinas, algoritmos, etc.). Se fecharmos o foco (para nos facilitar o entendimento) nos estudos da cognição humana, esta mudança profunda à qual nos referimos é a transição de um campo cujo centro gravitacional estava numa abordagem geral dualista para um campo cujo centro está localizado numa abordagem geral pragmática (aos fenômenos da cognição). O movimento específico dentro do campo das ciências cognitivas que agora testemunhamos de ascensão dessas abordagens centradas no corpo e na ação nos apresenta teses fundamentais e argumentações gerais em relação à cognição humana que foram antecipadas pelo pragmatismo, corrente filosófica inaugurada ao final do século XIX pelo filósofo e lógico norte-americano Charles Sanders Peirce.

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O que é Filosofia Especulativa? – Parte 03

por Rodrigo Petronio

[Abstract]: “This essay has the following objectives: 1. To investigate the main meanings of the concept of speculative philosophy and their respective aspects, authors and works. 2. Distinguish the general and restricted uses of the concept of speculation and speculative philosophy. 3. Explore the relationship between ontology and speculation in the 20th century. 4. Describe the centrality of the concept of infinity and transfinites to speculative philosophy. 5. Emphasize the importance of cosmology and ontology for the renewal of speculative philosophy. 6. Position the new status that speculation assumes in the media theory entitled mesology. 7. Describe the Transdimensional Topologies (TT) that emerge from this new statute. 8. Define this new speculative philosophy’s statute as Future Oriented Philosophy (FOF). 9. Analyze the main changes in the categories of time, space and causality promoted by this new definition of speculation and speculative philosophy.”

Topologias Transdimensionais (TT)

Entretanto, o que seria a especulação? Qual o papel da filosofia especulativa no organismo da mesologia? Em termos sucintos, a filosofia especulativa é uma filosofia que tem um compromisso radical com a variabilidade do universo-espelho e com as virtualidades da existência. Para tanto, um dos eixos de orientação do pensamento especulativo é o que tenho denominado como Topologias Transdimensionais (TT). A transdimensionalidade se distingue da multi, da inter e da pluridimensionalidade. A multidimensionalidade pressupõe a justaposição de muitas dimensões, mas não necessariamente uma variação estrutural e fatorial das leis de cada dimensão, de acordo com as interações que mantenham entre si. A interdimensionalidade pressupõe alguns planos de intersecção, de cruzamentos e de interconexões entre universos-dimensões. Porém, como o prefixo inter insinua, esta dimensionalidade realça o que ocorre entre e não necessariamente o que decorre das metamorfoses estruturais, substanciais e essenciais dessas intersecções no que diz respeito a cada universo e a cada dimensão. Por seu turno, a pluridimensionalidade pressupõe uma implicação e um imbricação de diversas universos-dimensões. Constitui uma das primeiras emergências dos pluriversos em termos dos mesons. Mas podemos dizer que esse emaranhado pluridimensional de pluriversos inscritos em dimensões distintas, sendo uma primeira emergência, ainda não descreve a totalidade das simetrias entre transversais de todos os pluriversos e dimensões do cosmos e dos mesocosmos. E, por isso, que se torna imperativo recorrermos à quarta categoria: as topologias transdimensionais. Continuar lendo

O que é Filosofia Especulativa?– Parte 02

por Rodrigo Petronio

[Abstract]: “This essay has the following objectives: 1. To investigate the main meanings of the concept of speculative philosophy and their respective aspects, authors and works. 2. Distinguish the general and restricted uses of the concept of speculation and speculative philosophy. 3. Explore the relationship between ontology and speculation in the 20th century. 4. Describe the centrality of the concept of infinity and transfinites to speculative philosophy. 5. Emphasize the importance of cosmology and ontology for the renewal of speculative philosophy. 6. Position the new status that speculation assumes in the media theory entitled mesology. 7. Describe the Transdimensional Topologies (TT) that emerge from this new statute. 8. Define this new speculative philosophy’s statute as Future Oriented Philosophy (FOF). 9. Analyze the main changes in the categories of time, space and causality promoted by this new definition of speculation and speculative philosophy.”

Figuras da Temporalidade

William Walsh (1968) baseia-se em uma perspectiva segundo a qual a filosofia especulativa seria um tratamento especial dada à temporalidade e à  historicidade. Não seria uma maneira de compreender a história da filosofia, mas uma doadora de modelos estruturais para a filosofia da história. Walsh situa Giambattista Vico, filósofo da história e criador de um novo modelo de compreensão dos ciclos históricos a partir do corso e do ricorso, do fluxo e do refluxo, como um dos primeiros porta-vozes dessa visão sobre o passado. Não por acaso a Ciência Nova é uma revolução nas ciências humanas e um divisor de águas na compreensão da temporalidade, dos mitos e da racionalidade. Pioneiro nas reflexões sobre o tempo humano, Vico foi lido e incorporado por nomes tão diversos quanto Marx, Isaiah Berlin e Lévi-Strauss. Nesses termos, a filosofia especulativa não seria um instrumento descritivo, compressivo ou hermenêutico dos eventos, em busca de um sentido. Especular seria operar a partir de categorias capazes de pensar as condições de possibilidades da totalidade dos eventos no tempo. E, mais do que isso, especular seria uma capacidade de reconhecer um certo fundo de determinação e liberdade por meio dos quais os processos históricos deixam de ser apenas irreversíveis e adquirem uma lógica interna em suas manifestações. Essa lógica pode ser extrapolada com o intuito de gerar padrões e regimes temporais recorrentes e, em certa medida, compossíveis e previsíveis. Ora, nessa chave, a conexão poderosa entre especulação e historicidade, pensamento e tempo profundo pode ser entendida como uma das matrizes de alguns autores basilares do pensamento moderno, como Hegel e o Idealismo alemão, Nietzsche e Freud. Inclusive pensadores tão diversos quanto Marx e Oswald Spengler podem ser identificados como pensadores especulativos. No século XX, Robin Collingwood (1978), Karl Löwith (1991), Reinhart Koselleck, Alexander Kojève, Fernand Braudel seriam expoentes da especulação. E, hoje em dia, a arqueologia dos media estaria em completa consonância com esse modelo especulativo-temporal. Continuar lendo

O que é Filosofia Especulativa?– Parte 01

por Rodrigo Petronio

[Abstract]: “This essay has the following objectives: 1. To investigate the main meanings of the concept of speculative philosophy and their respective aspects, authors and works. 2. Distinguish the general and restricted uses of the concept of speculation and speculative philosophy. 3. Explore the relationship between ontology and speculation in the 20th century. 4. Describe the centrality of the concept of infinity and transfinites to speculative philosophy. 5. Emphasize the importance of cosmology and ontology for the renewal of speculative philosophy. 6. Position the new status that speculation assumes in the media theory entitled mesology. 7. Describe the Transdimensional Topologies (TT) that emerge from this new statute. 8. Define this new speculative philosophy’s statute as Future Oriented Philosophy (FOF). 9. Analyze the main changes in the categories of time, space and causality promoted by this new definition of speculation and speculative philosophy.”

 

Especular

A obra A Queda do Céu é um dos mais importantes tratados da metafísica do século XXI. Composta pelo xamã ianomâmi Davi Kopenawa em colaboração com o antropólogo Bruce Albert, temos aqui a cosmologia ianomâmi descrita e explicitada ponto por ponto. Um dos conceitos-operadores centrais dessa cosmologia são os xapiri. Os xapiri são nano-entidade dinâmicas que constituem todo universo, tudo o que existe. Eles se revelam ao xamã sob a forma de nano-humanos, girando sobre espelhos. A dinâmica relacional desses infinitos nano-espelhos transumanos em movimento produz a totalidade do universo. Esta cosmologia pode ser descrita rigorosamente como uma monadologia ianomâmi. Ou Leibniz é que seria um ianomâmi da filosofia europeia? O importante é conceber essa noção de nano-universos e de nano-espelhos como matrizes instauradoras de todas as esferas do ser e do cosmos. Como usinas do real, como diria Nicolai Hartmann. E aqui começamos a adentrar nossa questão central. O termo spec do latim pode ser traduzido como especulação. Etimologicamente, é a raiz de speculum, que significa espelho e, por sua vez, deriva de specere, que significa olhar e observar. O verbo especular seria em termos literais espelhar. Outro sentido adjacente importante ocorre em relação ao termo espécie. A definição de espécies ocorre por meio da observação e, ao mesmo tempo, designa uma certa categorização do observado que produz uma taxonomia: uma distinção dos seres. Outro termo correlato é caverna (spéleos). A espeleologia é a ciência de investigação das cavernas ou de quaisquer ambiente profundos da Terra, como o oceano abissal. Entende-se assim por caverna não apenas a constituição rochosa da geologia, mas quaisquer espaços virtuais desconhecidos. A raiz de spec também se vincula a spe, que significa esperança. Outras línguas retêm a morfologia do latim, como o alemão (Spiegel), o dinamarquês (spejl), o iídiche (שפּיגל, shpigl) e o basco (ispilu). Mesmo em línguas cujo termo espelho deriva de outros radicais, como em inglês (mirror), em francês (miroir) e em árabe (مرآة, mara), parece haver uma convergência para o sentido da raiz latina mir, a mesma de miragem, maravilha e mirar (observar). Uma investigação mais detalhada precisaria levantar em que medida esta estrutura comum tem suas origens na estrutura indo-europeia das palavras com prefixo m’, de onde derivam também mito (mýthos), mudez (mutus), imitação (mimesis) e mundo (mundus), mas este é um campo arenoso e não é meu objetivo me mover por ele aqui. O que me interessa é, por meio de analogias e por meio desta espectral espeleologia do conceito, definir a filosofia especulativa como uma filosofia-espelho e a cosmologia especulativa como a investigação de um universo-espelho. E levantar em que medida a potência deste conceito-imagem pode revelar campos ônticos e epistêmicos inesperados, em um percurso abdutivo e heurístico. Continuar lendo

Não há conhecimento sério que seja fruto do ‘ready-made’. Não há discurso embasado que se sustente no ‘prêt-à-porter’

por Adriano Messias

[Abstract]
“This text proposes a critical viewpoint of speculative realism. It focuses on the attempt of the so-called speculative realists to ignore the inevitable human view of the world and things. At the same time, I establish an appropriate range of reflections on psychoanalysis and neurosciences. The considerations developed here are according to a very personal perspective: it is impossible to deal with any topic without the presence of language as a mediation. On the other hand, in our contemporaneity marked by fast explanations in social media, by internet trolls and fakenews, just a serious and dense study seems able to guide researchers who really intend to produce knowledge.”

[Resumen]
“Este texto propone una crítica sobre el realismo especulativo, enfocada en el intento de los llamados realistas especulativos en ignorar el inevitable punto de vista humano sobre el mundo y las cosas. Al mismo tiempo, abro aquí un abanico de reflexiones que abordan también el psicoanálisis y las neurociencias. La canalización de las ponderaciones hechas se da hacia mi perspectiva personal de ser imposible tratar de cualquier tópico sin la presencia del lenguaje como mediación. Por otro lado, en la contemporaneidad atravesada por explicaciones rápidas en redes sociales, por trolls y por fakenews, sólo el estudio serio y denso me parece un orientador adecuado a los investigadores que desean producir conocimiento.”

 

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Merlí

Os realistas especulativos (R.E.) não são os peripatéticos do século XXI. Ao contrário dos helenos antigos, vários dos R.E. apenas deambulam e, algumas vezes, o fazem a esmo. Vários desses novos filósofos deveriam ver com urgência as três temporadas da série catalã Merlí (Hector Lozano, 2015-2016) para entenderem melhor o que estão delirando em derrubar: o delicado envoltório “cultura e linguagem” que particulariza nossa espécie.

Pode ser que os R.E. também encontrem, nos personagens espanhóis, os traços narcísicos da própria adolescência, incluindo conflitos por serem resolvidos, os quais, invariavelmente, repercutem entre os acadêmicos que se espalham pela superfície desse terceiro pedregulho após o Sol, tanto acima quanto abaixo da linha do Equador. É questão de se descobrir e nomear o próprio S11 em uma caminhada sensível e pessoal, a fim de que se possa tocar a vida de forma menos arrogante. Porém, a sustentação do desejo depende de coragem, e não apenas de letramento.

Merlí começa pelos peripatéticos gregos e termina com os peripatéticos do século XX, incluindo, em um variado rol de pensadores, o próprio professor de Filosofia que dá título à série. Ele é o elemento-chave que alinhava o filósofo-mote de cada episódio com as questões da vida comum dos alunos secundaristas de um colégio de Barcelona. Além de terem aulas de Latim e Artes em uma instituição pública, os estudantes podem conhecer um pouco sobre Schopenhauer, Freud, Hannah Arendt, Foucault, Bauman, Kant, Zizek, Judith Butler, Nietzsche, dentre outros, por intermédio de um professor arguto. E não dê importância às críticas das redes sociais que sempre escarnecem certos produtos audiovisuais e literários: uma boa parte delas foi escrita por gente amargada e ávida em criar polêmicas e impulsionar algum canal egoico no youtube.

Antes de continuar, porém, peguemos o metrô e desçamos no Largo de São Bento.

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II Colóquio Realismo Especulativo: desafios do humano na contemporaneidade

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A internet das coisas está hoje sincronizando com uma tendência filosófica que emergiu recentemente sob o nome de “realismo especulativo”. O realismo especulativo — ou filosofia orientada a objeto, ou ainda ontologia orientada a objeto (OOO) — funciona apenas como um guarda-chuva que abriga uma série de autores com tendências distintas e que partem de gêneses também distintas. Alguns são teóricos da literatura e filmes, outros são especialistas em games, outros ainda são ecólogos. Dessa forma, o realismo especulativo vem chamando a atenção mundial em diversos campos, especialmente no campo da arte contemporânea, do design e da arquitetura.

O II Colóquio Realismo Especulativo: desafios do humano na contemporaneidade procura explorar desde os fundamentos desta tendência filosófica, passando pelas críticas a ela, pelas possíveis interfaces com outras teorias filosóficas, chegando às possíveis relações como a arte, a ciência e a vida cotidiana.

II Colóquio Realismo Especulativo: desafios do humano na contemporaneidade
Org. Lucia Santaella

07 de dezembro de 2017 – quinta-feira – a partir das 9h
Rua Caio Prado, 102 – Prédio 4, Auditório 415 (1º andar)
PUC – SP Campus Consolação

*Evento gratuito com emissão de certificado para os participantes

Programação completa em:
https://transobjeto.wordpress.com/agenda/realismo-especulativo/

Realização: Transobjeto
Apoio: PUC-SP e TIDD

Quentin Meillassoux, Donald Trump, Elvis Presley e o playground da pós-verdade

por Gustavo Rick Amaral

Quentin Meillassoux, Donald Trump, Elvis Presley and the post-truth playground 

[Abstract]
“The objective of this paper is to compare the speculative realism introduced by the French philosopher Quentin Meillassoux in the book “After Finitude” and the kind of realism defended by Charles S. Peirce. The role phenomenology and semiotics have in the Peirce’s philosophical system makes the peircean realism totally incompatible with the speculative realism. The reason is that the anti-correlationist position of Meillassoux is at odds with some basic peircean thesis (like “all thoughts is in signs” – CP 5.253 [1868]).  This comparative study is followed by a description of some elements of the historical (cultural and political) context in which the Meillassoux philosophical project arise
.”

Na obra “Depois da infinitude”, o filósofo francês Quentin Meillassoux (2008) nos apresenta um projeto filosófico cujo ponto central é a reabilitação da distinção entre qualidades primárias e secundárias associado ao objetivo de estabelecer a tese segundo a qual a contingência seria o único princípio absolutamente necessário no universo. No presente artigo, não pretendemos desenvolver uma análise dos argumentos do filósofo e apresentar uma refutação de suas teses. Fosse esse nosso objetivo, acreditamos que um bom começo seria questioná-lo a respeito do problema de auto-referencialidade envolvido na sustentação do princípio acima anunciado. Se o princípio for um pensamento ou uma proposição, seria ele mesmo contingente, i.e., estaria ele mesmo submetido ao princípio (cf. o que Ray Brassier chamou de paradoxo da contingência absoluta – Brassier, 2007, p. 85)? O objetivo deste artigo é fazer, em primeiro lugar, uma comparação de diretrizes e características gerais do realismo especulativo de Meillassoux e da filosofia peirceana (para demonstrar a incompatibilidade entre as duas filosofias) e, em segundo lugar, uma contextualização (no cenário político e cultural contemporâneo) das instigantes propostas teóricas do filósofo francês. Comecemos com um trecho da obra “Depois da Finitude” em que Meillassoux apresenta a tarefa do realismo especulativo. Continuar lendo

I Colóquio Realismo Especulativo e Realismo Peirceano

I Colóquio Realismo Especulativo e Realismo Peirceano
Tema: Realismo Especulativo sob o signo da diversidade

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4 de novembro de 2016, das 9h às 16h00
PUC-SP Campus Perdizes — Rua Monte Alegre, 984
Auditório 239 – Prof. Paulo Barros de Carvalho

Evento: https://www.facebook.com/events/909370192526751
Inscrições: https://goo.gl/forms/rKmqMSCVDhwj5NQu1

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Surgimento do Realismo Especulativo

por Isabel Jungk

The Beginning of Speculative Realism

[Abstract]

“Since the 1990’s and early 2000’s, a new form of epistemology and metaphysics focused on the objects themselves began to emerge This post aims to present some of the most important moments in the formation of this philosophical movement – known as Speculative Realism – as well as the positions relative to the choice of its name by the various authors who initially formed the movement, showing their differences and their common denominator in criticizing correlacionism or the so called philosophies of access, and towards the development of an object oriented ontology (OOO).”

capa_realismo especImagem da capa do livro The Speculative Turn: Materialism and Realism 
(BRYANT et al., 2011)

Desde a década de 1990 e início dos anos 2000, uma nova forma de epistemologia e metafísica voltada para os existentes em si mesmos começou a emergir; mais tarde, ela viria a se autodenominar Speculative Realism, nome “potente” mas “controverso” (cf. NÖTH, 2016). Os momentos mais relevantes para a formação desse movimento filosófico são relatados por Graham Harman, filósofo e professor na Universidade Americana do Cairo, em seu livro Quentin Meillassoux: Philosophy in the Making, sobre a obra do jovem filósofo francês, lançado em 2011 e que recentemente em 2015 recebeu sua segunda edição. Como o próprio Harman (2011, p. 77) afirma, “não é exagero dizer que o Realismo Especulativo tem sido até agora o mais visível dos movimentos na filosofia continental no século XXI”.

O surgimento do movimento se deu em função de uma série de encontros, convergências de interesses e buscas filosóficas, entre Ray Brassier, Ian Hamilton Grant, Quentin Meillassoux e o próprio Graham Harman, que ele relata em seu livro (ibid., pp. 77-85). Em 2005, Harmam houvera proferido uma palestra com o título Heidegger’s Thing and Beyond, cujo tema se aproximava bastante de outra palestra proferida por Grant meses antes, e da qual Harman tomou conhecimento através de Brassier. Em conversações com Harman, Brassier comentou sobre um livro recém lançado à época (2006), de autoria de um filósofo francês, Quentin Meillassoux, cujo título era Après la finitude: Essai sur la nécessité de la contingence, e cujas idéias tinham muito em comum com aquelas que vinham sendo discutidas por eles. A partir da leitura do livro, surgiu a idéia de um encontro acadêmico entre os quatro, que foi viabilizado por Alberto Toscano. Harman também sugeriu a Bruno Latour um seminário sobre o livro de Meillassoux, que foi realizado em fevereiro de 2006. Continuar lendo

Ecos da exaptação no realismo de Bryant

por Guilherme Henrique de Oliveira Cestari

Echoes of exaptation in Bryant’s Speculative Realism

[Abstract]

“The term exaptation was coined in 1982 by the evolutionary biologists Stephen Gould and Elisabeth Vrba. The phenomenon is also known as pre-adaptation, preaptation or cooptation. The term refers to an evolutionary process during which structures and features of a bodily organ acquires uses for which they were not initially designed. In Onto-Cartography (2014), Levi Bryant takes exaptation to describe the evolution not just of living organisms, but also of objects in general, called by him machines. According to Bryant, there is no planning in the course of the evolution of nature. All phenomena emerge randomly in organisms. In an evolutionary sequence of couplings with other structures, the functions of organs become highly flexible. In contrast to most evolutionists, Bryant rejects the idea that bodily organs were originally been designed for specific purposes. Bryant claims that purposes of organs are acquired and not ontologically inherent. Bryant adopts the concept of exaptation to conceive of evolutionary processes in a “geophilosophical” perspective in order to map a material non-teleological universe permeated with diverse types and layers of machines. In their operative flows, such “machines” are interdependent among themselves and tend to couple with each other.”

Que regras e estruturas regem a evolução histórica e social dos usos das coisas? Esse percurso evolutivo tem algo em comum com a evolução biológica dos organismos e espécies? Neste texto abordamos a exaptação como processo evolutivo que incorpora o imprevisto e que caracteriza a evolução como ação criativa, combinatória e contínua. Em especial, discutimos a apropriação feita por Levi Bryant do termo oriundo da biologia para descrever a evolução das máquinas em sentido abrangente.

O uso da palavra “exaptação” foi proposto por Stephen Jay Gould e Elisabeth S. Vrba para descrever o processo evolutivo por meio do qual estruturas e qualidades de um organismo envolvidas em outros usos (ou mesmo sem uso aparente) são aliciadas para um uso diferente e inesperado (Gould e Vrba, 1982, p. 6). Segundo Lass (1990, p. 81), a criação e a utilização do termo pressupõem que teorias da evolução embasadas única e estritamente na seleção natural têm grandes chances de serem heuristicamente restritivas. O caso de exaptação incialmente comentado por Gould e Vrba (1982, p.7-8) é o deslocamento da função (“functional shift”) das penas e da estrutura óssea das asas em ancestrais de pássaros. Originalmente, as penas possuíam as funções de isolamento térmico. Elas foram cooptadas para a captura de grandes insetos aéreos, atuando como uma teia natural que ajuda a encurralar presas (cf. Ostrom, 1974, p. 34, 41). Apenas posteriormente as características de captura de insetos passaram a servir, via nova exaptação, para voar (cf. Figura 1). Continuar lendo