O senciente e a descognição de acordo com Steven Shaviro

por Thiago Mittermayer

[Abstract] “The purpose of this text is to present the concepts of sentience and discognition elaborated by Steven Shaviro in his book Discognition (2016).

discognition

O propósito deste texto é apresentar os conceitos de senciência (sentience) e descognição (discognition) explicados por Steven Shaviro no livro Discognition (2016). Shaviro é filósofo e professor da Wayne State University (Michigan). Seu interesse está voltado para as seguintes temáticas: filosofia, ficção científica, pós-modernismo, teoria literária, teoria fílmica, panpsiquismo, realismo especulativo, tempo, dentre outros. Além de seus livros, podemos acompanhar as pesquisas de Shaviro por meio de seu blog: The Pinocchio Theory.

No início do livro, Shaviro (2016, p. 8) lança ao vento as seguintes perguntas: “O que é consciência? (…) Por falar nisso, como é ser um cachorro, um robô ou uma árvore – ou até mesmo um ser humano? O que realmente significa ser consciente, pensar, sentir ou saber?” Para ele ainda não encontramos respostas plausíveis para estes questionamentos. Assim, Shaviro (ibid., p. 9) opta por utilizar o termo senciente (sentience) no lugar de consciência e pensamento, isto porque o conceito de senciente “não pressupõe que os processos e experiências mentais sejam racionais, nem mesmo que sejam necessariamente conscientes”. Continuar lendo

Securitização da mente

por Alessandro Mancio de Camargo

 [Abstract] “This posting encourages the reflection about the relational logics aimed at the potential of several mental process – as seen in fuzzy domestic garden and forest, equitably linked to complete, deep and interactive networks –, in order to meet and understand ecosystem needs to enhance cooperation between the different modes of relations and cognitive exchanges existing in the Earth.”

DSC05507.jpg

De cunho mais racional, na tradição ocidental, ou instintivo, no pensamento do Oriente, a consciência pode ser entendida como parte da dinâmica que se estabelece entre percepções, impressões, autonomias vinculadas a qualquer acontecimento real ou imaginário. Assim, 14 tipos de manifestações seriam associados a ela, conforme definição do movimento indiano Brahma Kumaris (RIBEIRO, 2013). Mesmo com essa diversidade, especula-se que, em até 50 anos, a consciência poderá ser transferida de um corpo de carbono para uma pastilha de silício ou grafeno a serviço da Inteligência Artificial ou IA (WATSON, 2010). Mas a que preço?

Antes de efetivar a previsão de uma IA forte, no sentido de integrar a consciência de forma plena ao avanço digital, o escopo das manifestações ditas conscientes já está menos diversificado. A taxa de extinção de espécies animais no século XX foi até 100 vezes maior do que teria sido normal sem o impacto das redes tecnológicas criadas posteriormente à Revolução Industrial, por exemplo (CAMARGO, 2018). Acontecimentos como esse levam à uma redução da consciência ecológica à medida que mais e mais espécies são expulsas de seus habitats originais e deixam de atuar em situações corriqueiras da condição humana ou ecossistêmica, tais como coletar os próprios alimentos, germinar, procriar, dedicar mais tempo ao sono. Continuar lendo

O que quer a neuropsicanálise?

por Adriano Messias

[Abstract]: “This text starts with Jacques Lacan and Arthur Rimbaud and deals with René Descartes and Nietzsche in an effort to provide a reflection on the concept of ego and mind for the so-called neuropsychoanalysis. Contributions of the Catalan psychoanalyst Miquel Bassols i Puig also marks my approach. I point out that both the ego and the mind in the psychoanalytic context are inapprehensible, highlighting an impossibility for some scientific fields, above all for the longings of certain A.I. perspectives. In the semiotic game behind the wish for a technologically manipulated mind, there is always something escaping from the master’s discourse, even though it is always there, as exemplified by the Lacanian concept of extimité. I also comment the works of Mark Solms and Karen Kaplan-Solms on neuropsychoanalysis and a possible clinical application in cases of mental dysfunctions, such as Korsakoff syndrome. I conclude that mind, from my inflection points, would be much more connected to a symbolic network of significant elements, as Bassols i Puig proposes, than necessarily to a mapped and imprisoned area of the brain.”

Key-words: neuropsychoanalysis – psychoanalytic semiotics – mind – ego – extimité

***

“O que experimentamos como corpo
e o que experimentamos como mente ocupam,
na verdade, o mesmo lugar”
(Bassols i Puig)

unicornio
Auroque alado, Palácio de Dario em Susa, Pérsia, 510 a.C. (Museu do Louvre)

“Eu é um outro”

Um dos delírios de certa ciência é acreditar na decifração de um saber escrito no real por meio de um sujeito suposto saber, seja ele Deus, a Natureza, a Evolução, e, mais recentemente, a tal consciência e a própria mente: ou seja, nota-se sempre um sujeito a tomar o real como signo. Bassols i Puig (cf. 2015, p. 27) ressalta a ideia de que procurar a consciência em uma construção de eu com sustentação orgânica é inútil, uma vez que, em psicanálise, o eu se faz necessariamente pela mediação de um outro, aludindo à citação de Lacan de uma frase de Arthur Rimbaud, Je est un autre: “Car Je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute” (“Porque Eu é um outro. Se o cobre desperta em corneta, que culpa tem ele”?[1]).

Trata-se de um excerto da famosa carta de Rimbaud endereçada ao poeta francês Paul Demeny, chamada lettre du voyant, “carta do vidente”. Em tal formulação, constitui-se um paradoxo: o fato de se associar o “eu” que identifica o sujeito a uma alteridade que, por si só, seria um seu contrário, estranha e indefinida. Porém, tal contradição se evidencia quando se considera somente a concepção clássica do sujeito – referência primordial de identidade –, na qual este último se reportaria a si mesmo e às suas ações em primeira pessoa. Por isso, quando Rimbaud, ao escrever a carta de 15 de maio de 1871, diz anticartesianamente “Je est un autre” (“Eu sou um outro”), ele assume que a criação artística tem um embasamento bem original e que o domínio do “eu” não passa de uma ilusão por não se conseguir dominar o que dele e nele se expressa: “J’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute.” (Eu assisto à eclosão de meu pensamento: eu a observo, eu a escuto.”). Continuar lendo

O quarto de Mary

o quarto de mary

por Patrícia Fonseca Fanaya

[Abstract] “Jackson’s argument of knowledge aims at challenging the alleged completeness of the physical theories about the mind. However plausible his argument may be, all matters relating to the mind, to its relations with the world, or to cognition are neither simple to be understood nor to be explained. Although it may seem counterintuitive at first sight, physicalism is currently the dominant tendency among physicists, biologists, and philosophers of mind.

Em 1982, em seu artigo ​Epiphenomenal Qualia​, o filósofo australiano Frank Jackson propôs um experimento mental que ficou conhecido como o “argumento do conhecimento” (​the ​knowledge argument ou ​Mary’s Room​), e cujo objetivo principal, à época, era o de questionar o fisicalismo; ou em outras palavras, a ideia de que tudo o que há no universo, inclusive a mente, é de natureza física, e passível de ser completamente explicada pela ciência. Os fisicalistas consideram que a ideia abraçada pelo senso comum de que a mente é algo especial, seja porque é autoconsciente, ou porque pode pensar e sentir, ou, ainda, porque tem livre-arbítrio, é uma ilusão.

Continuar lendo

Consciência: uma abordagem científica

por Ronaldo Marin

ronaldo post

[Abstract]
“The main objective of this text is to present the possibility of an objective approach of the conscience in order to elide its elusive character, thus making it an object subject to scientific analysis. In this way we can demonstrate that the phenomenon of consciousness is the result of the biological processes that permeates the evolution of the brain in humans. After contextualizing the problem by demonstrating that the scientific unification between the body and the conscious mind will be resisted by the conservative sectors of society and practitioners of spiritualist beliefs, we take the model of consciousness that is based on the studies carried out by António Damásio and with it we develop a method of theatrical performance called Ação Sublime (Sublime Action). Next, we describe this methodology, through which the actors are able to construct an objective and controlled way the “consciousness” of a character that, when elaborated from an established text or script, offers us the possibility of studying the processes involved in the genesis of consciousness.”

 

The play’s the thing,
Wherein I’ll catch the conscience of the King
Hamlet 2:2

No século XXI a consciência deixou de ser tema da especulação filosófica para se tornar, definitivamente, um tema do conhecimento científico.

Hoje sabemos que a consciência surge para potencializar os comportamentos favoráveis à preservação do corpo biológico e da mente em um organismo vivo. Na verdade, a vida é dominada pelos processos inconscientes; a vida não precisa da consciência para existir, aliás a vida existe e existiu por milhões de anos na superfície do planeta sem o menor traço de consciência ou de algum propósito específico. A consciência é um fenômeno recente no processo evolutivo da mente humana. Num registro popular poderíamos dizer que, evolutivamente falando, a consciência pegou o bonde andando e “sentou na janelinha”.

Essa voz interna que nos ajuda ou às vezes nos atrapalha – “a consciência nos faz covardes” nos adverte Hamlet em seu principal solilóquio da peça – é um fenômeno que não tem muito mais do que algumas centenas de milhares de anos de acordo com a maioria dos autores que se dedicaram ao tema.  Na década de 70, Julian Jaynes foi um dos pioneiros, atribuindo cerca de 100 mil anos ao evento da emergência da consciência humana em seu livro The Origin of Counsciousness in the Brakedown of the Bicameral Mind. E, para um exemplo bastante atual, Yuval Harari autor do best-seller Sapiens aceita que esse fenômeno possa ter ocorrido em torno de pelo menos 70 mil anos atrás. Fato interessante, porém, ainda carente de comprovação científica. Entretanto, o que já não deixa mais dúvidas, pelo menos entre os neurocientistas envolvidos em estudos experimentais sobre a consciência, é o fato de que ela não pode mais ser considerada de maneira separada das estruturas biológicas do encéfalo ou ter sua existência independente da matéria que compõe o cérebro. A popular visão dualística que postula que a consciência ou a mente possam ter uma existência independente da estrutura física do cérebro é comumente atribuída ao pensamento cartesiano mas, aparentemente sempre existiu desde as mais variadas civilizações antigas. Entretanto, essa visão vem sendo sistematicamente descontruída pelo conhecimento moderno que nos chega no bojo do desenvolvimento dos estudos contemporâneos, como atesta o livro Princípios de Neurociências de Eric Kandel, um dos mais respeitados compêndios da área Continuar lendo

Simpósio de Inteligência Artificial e Consciência

consciencia

Simpósio Inteligência Artificial e Consciência – promovido pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD (PUC-SP) e Sesc-SP
28 e 29 de novembro de 2018
Local: Teatro Sesc 24 de Maio   Rua 24 de Maio, 109 – República, São Paulo – SP

 

O Programa de Estudos Pós-Graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD (PUC-SP), em seu empenho em construir pontes teóricas entre a ciência da computação e as ciências sociais, em 2017 introduziu o tema dos impactos sociais da inteligência artificial por meio de diversas iniciativas (curso de IA na pós-graduação, edição da revista TECCOGS sobre o tema, criação de grupo de pesquisa, participação em congressos e conferências no Brasil e no Exterior, dentre outras). O simpósio foi concebido como fórum de unificação e compartilhamento das pesquisas dos dois primeiros anos, com a comunidade acadêmica sobretudo os pesquisadores e os alunos de pós-graduação e graduação do Estado de São Paulo.

O objetivo é promover um espaço inter, multi e transdisciplinar para debates em torno dos impactos sociais da inteligência artificial, particularmente os decorrentes do avanço a partir dos anos 2006/2010 – resultados concretos obtidos do processo de aprendizado profundo (deep learning) -, e a consciência, contemplando a alegada distinção homem/máquina inteligente.

A programação mescla dois pesquisadores internacionais com significativas contribuições à pesquisa (o professor associado em ciência da computação no Courant Institute of Mathematical Sciences da New York University, Davi Geiger; e o semioticista uruguaio, membro da Faculdade de Pós-Graduação e Pós-Doutorado da Universidade de Ottawa, Fernando Andacht), pesquisadores brasileiros de notável reconhecimento entre os seus pares no Brasil e no exterior, e professores, pós-doutorandos e alunos de pós-graduação do TIDD. É uma oportunidade, dentre outras, de debater com a comunidade acadêmica as pesquisas que estão sendo desenvolvidas pelo programa.

Para enriquecer o debate e promover a aproximação entre universidade e sociedade, convidamos pesquisadores de duas líderes globais de tecnologia, IBM e Amazon, para expor seus estágios de desenvolvimento com relação a inteligência artificial e desafios atuais e futuros.

Continuar lendo

Introduction to the study of human and nonhuman consciousness with Peirce

by Winfried Nöth

Consciousness was programmatically denied to nonhuman beings by René Descartes, when he declared that only humans, beings endowed with a soul, could qualify as conscious beings. The restriction of consciousness to self-consciousness has an equally long tradition. It culminated perhaps in Julian Jaynes’s theory of The Origins of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind(1974) in which the author argues that consciousness, in the sense of self-reflexive awareness of a self in her or his thoughts and actions, is a relatively recent feature of human cognition.

In modern consciousness studies, the extension of the concept of consciousness in these two directions has only begun recently. Unaware of Peirce’s theory of consciousness, Michael Tye (2017), a renowned scholar in contemporary consciousness studies, proposes such extensions. The extension of the concept from humans to nonhuman animals, such as bees and crabs, is suggested and argued in the title of Tye’s new book, which is, Tense Bees and Shell-Shocked Crabs: Are Animals Conscious? The extension to awareness and perception in general is expressed in Tye’s following definition of consciousness: “I suggest that the connection [between consciousness and experience] is a very simple one: a being is conscious just in case it undergoes experience. So the problem of animal experiences is one and the same as the problem of consciousness” (2017: xv). Continuar lendo

Sobre Tempo e Consciência

por Ronaldo Marin

[Abstract]

“In the last few years the quantum gravity theory has been presented as one of the theories that could be able to promote the unification of the fields of relativistic and quantum physics. At its core, however, lies the condition that time doesn’t exist at the most fundamental level of reality. This text defends the validity of such an argument while presenting the natural perception of a continuous time and space as the composition of the conscious mind so that it can sustain a meaningful narrative bond – based on the past-present-future sequence – which is critical to the behavior of consciousness. However the subjective temporal structure past-present-future is only realized through memory, making the phenomenon of consciousness inseparable from biological materiality, which allows us to propose a connection between the inexistence of time at the fundamental level of reality and the impossibility of the disembodied mind.”

texto em PDF

 salvador_dali
A persistência da memória (1931) – Salvador Dali 

 

O tempo é a informação que não temos.
O tempo é a nossa ignorância.
Carlo Rovelli

Tempo e espaço sempre foram fundamentais para qualquer descrição da realidade na história do pensamento. Lugar e tempo são duas das dez categorias aristotélicas, existindo também como faculdades a priori no sujeito nas categorias do intelecto kantiano. Há pouco mais de um século Albert Einstein demonstrou, através da teoria da Relatividade Restrita, que não podemos separar essas duas grandezas físicas. Temos que pensá-las como uma só: o continuum espaço-tempo. Se, por um lado a questão foi resolvida com relativa facilidade através da colocação de um simples hífen, de outro trouxe uma enorme dificuldade para o entendimento da realidade para a maioria das pessoas, por se tratar de uma percepção contra-intuitiva da natureza. Até mesmo as leis da física clássica lidavam com essas grandezas de maneira absoluta e dissociada, mas agora o quadro da realidade objetiva começava a ser pintado sobre a tela do universo constituída pelo tecido contínuo do espaço-tempo. Alguns anos mais tarde, Einstein trouxe à luz a teoria da Relatividade Geral explicando a gravidade como o efeito da maleabilidade do tecido do espaço-tempo mediante a presença de matéria. Quase ao mesmo tempo, o interesse pelas relações entre matéria e energia e pela estrutura fundamental desta matéria – que em grande quantidade é capaz de curvar o espaço-tempo – iria estabelecer as bases de outra visão revolucionária, a Teoria Quântica. Entretanto, a tentativa de fazer com que as duas teorias trabalhassem juntas unificando os novos conceitos de gravidade, relatividade e quantização é uma questão que continua a desafiar a física do século XXI. Entre as teorias que tentam lidar com o problema e construir uma teoria de campo unificado há a denominada gravidade quântica que nos leva direto ao cerne de uma importante questão: a não existência do tempo na fundamentação da realidade. Continuar lendo