Inteligência artificial : uma implementação com base em Peirce

por Ricardo Maciel Gazoni

[Abstract] “The text presents a work-in-progress that aims to implement an artificial intelligence based on a Peircean framework. It is based on the belief that although (in a Peircean sense) concepts such as reasoning and thinking are already carried out by computers, it is possible to implement them in a more familiar way, allowing programming in a more dialogic and less deterministic way. It uses as an example a program capable of  learning to play and finding a way to win matches. This idea is complemented by abstractions that would allow the program to perform self-reflection and proper comunication.”

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Este fecundo webespaço abrigou recentemente três posts que tocam a questão da execução, por máquinas, de atividades que até recentemente só se viam em seres vivos. O presente texto foi induzido por essas intervenções:

Eduardo Camargo, n’Os olhos do robô, pergunta: “como emular, em um robô, comportamentos humanos tão perfeitos que nem mesmo seu olhar consiga traí-lo? E como fazer Sophia [um robô humanoide] lidar com o paradoxo de dizer não, quando está programada para dizer sim?”.

Noutro post, Alberto Cabral sobrevoa a relação entre IA e games (aqui), e nos lembra das experiências extraordinariamente envolventes dos jogos eletrônicos – têm de ser assim, são seu argumento de venda – e da verossimilhança das inteligências artificiais  utilizadas neles. Apesar de parecerem “emocionalmente” humanas, são classificadas como inteligências artificiais “fracas”. Cabral cita Russel e Norvig para explicar: “a abordagem que considera que máquinas podem agir como se fossem inteligentes é chamada pelos filósofos de hipótese da IA Fraca, e a abordagem que considera que ao agir inteligentemente as máquinas possam de fato estar pensando (e não apenas simulando pensamento) é chamada de hipótese da IA Forte”.

As colocações de Cabral não passaram despercebidas a Odécio Souza, que aqui repudia o uso dos termos “forte” e “fraca” por conta de sua superficialidade; seu texto levanta diversas questões que destacam a complexidade do tema: moral, legislação, identidade, entre outros.

A ideia

A pesquisa que recentemente defendi na tese de doutorado (“Computadores eletrônicos como agentes semióticos autônomos”, disponível aqui) propõe elementos dentro da filosofia de Peirce que podem ser aplicados aos computadores. Isso permitiria uma autonomia de atuação que talvez abra caminho para uma programação “dialógica”. Nessa forma de interação, a máquina não segue um conjunto rígido de instruções mas, antes, é capaz de gerar resultados a partir de definições um pouco mais vagas e propor, por si, soluções ao que se lhe propõe. Continuar lendo

Máquinas, Ética e Estética: uma abordagem peirciana

por Ricardo Maciel Gazoni

[Abstract]
Aesthetics, Ethics and Logic or Semiotic are, for Peirce, the normative sciences: they define the rules to be followed by every other science. Peirce also says that our superiority over the brutes is due to our greater number of grades of self-control. The text applies these ideas to an analysis of thinking machines and their autonomy.

 

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No dia 15 de Agosto passado Dora Kaufman indagou, aqui neste mesmo sítio da teia, se máquinas inteligentes são agentes morais. Excelente pergunta, que inspirou o desejo de acrescentar algumas considerações de viés peirciano. Dois temas: ciências normativas e autonomia.

Peirce designa três ciências normativas: Estética, Ética e Semiótica, esta última também conhecida como Lógica. São normativas porque determinam as leis de raciocínio a serem seguidas por todas as demais ciências: “lógica quanto a representações da verdade, ética quanto aos esforços da vontade, e estética em objetos considerados simplesmente em suas presentações” (CP 5.36, 1903)[i]. Santaella (1994) debruçou-se sobre a questão Estética em Peirce. Resumindo seu texto ao limite —o que é suficiente para nosso propósito—, as razões pelas quais a Lógica deveria (por exemplo) perseguir proposições verdadeiras não podem ser justificadas pela Lógica somente. Ela depende da Ética, a ciência que estuda as ações adequadas. E ainda que a Ética defina as ações, aquilo que é desejável por si é estudado pela Estética; esta deve, portanto, determinar a finalidade das ações escolhidas pela Ética. Vemos aqui, lembra-nos Santaella, as tonalidades das categorias peircianas: Estética e Primeiridade, Ética e Secundidade, Semiótica e Terceiridade.

Segue-se que o ato de pensar logicamente, seja o pensador humano ou não, depende de determinações que vão além da capacidade do pensamento lógico em si. Depende das conclusões de uma ciência da ação, uma Ética. E depende de um critério de escolhas, um critério que determine o que deve ser buscado por si, dado pela Estética. Continuar lendo

Por que a Ciência anda tão parecida com a Religião?

 

por Ricardo Maciel Gazoni

[Abstract]:
“Scientific publishing seems to have a function other than spread scientific knowledge among the scientific community: it also seems to work as an authority that announces to the non-specialists what is “scientific proven” defining what might be regarded as true. The text analyses this phenomenon and some consequences based on Peirce’s theories on the methods for the fixation of belief.”

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Certos acontecimentos parecem ter uma razão oculta quando de maneira quase milagrosa cristalizam uma ideia que vinha sendo gestada aos poucos, sem que a tenhamos percebido. Aconteceu comigo esses dias: lendo o texto delicioso da Juliana Rocha Franco neste mesmo espaço internético (“Notas para se pensar as bolhas online a partir de Peirce”) tive a impressão de que o texto estava lá para resolver um problema que começou a martelar um bocado antes. Digo “resolver”, mas não há solução nenhuma aqui. É que de repente parece possível formular a pergunta certa, o que já é um alento. Comecemos do começo.

Em 15 de Maio de 2017 o Jornal da USP publicou um artigo intitulado “A homeopatia é uma farsa”, assinado por Beny Spira, doutor em genética molecular pela Universidade de Tel-Aviv. O texto, que pode ser lido aqui, é uma resposta a um texto anterior publicado no mesmo jornal (este aqui) que critica a deficiência no ensino de homeopatia veterinária na USP. O artigo de Beny Spira é conciso e apresenta alguns estudos científicos publicados em revistas de renome que suportam a argumentação do autor, que é uma crítica ao próprio jornal de USP pela publicação de conhecimento “errado, arcaico e perigoso”. Leitura que, por citar boas fontes, permite também acompanhar a discussão a respeito da homeopatia nas publicações científicas. O texto encontrou respostas no próprio Jornal da USP (por exemplo, esta) e repercutiu nas redes sociais, onde foi citado pelos que defendem e pelos que atacam a homeopatia, além de ser compartilhado por páginas que se preocupam em louvar o saber científico em detrimento de outros saberes. Continuar lendo

O desafio da imitação

por Ricardo Maciel Gazoni

The Imitiation Challenge

[Abstract]

“The title refers to the “imitation game”, proposed by Turing in order to describe a behavior that could be regarded as intelligent. Taking concepts mainly extracted from the philosophy of C. S. Peirce, the text constructs a hypothesis of how it would be possible to create in a computer a behavior that imitates humans’. A fantasy, but it could well work…”

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Em 1950 o grande matemático britânico Alan Turing publicou na revista Mind um artigo no qual especula se as máquinas podem ou não pensar; nesse artigo, sem definir o que é inteligência, propõe um teste que permitiria identificar comportamento inteligente numa máquina – referia-se aos primeiros computadores digitais. Esse teste, que ficou conhecido como Teste de Turing, é baseado num jogo de salão, o “jogo da imitação”. Nele, um homem e uma mulher, incógnitos para um terceiro jogador, o juiz, deveriam convencê-lo através de diálogos por escrito de que é a mulher. Ou seja, –-e parafraseio Turing— se o juiz perguntasse ao jogador X algo como “Qual o comprimento do seu cabelo?”, se X fosse o jogador homem ele poderia responder: “Meu cabelo é tipo chanel, e os fios mais longos têm cerca de vinte centímetros”, uma óbvia mentira para os padrões da época. Turing propõe que um dos jogadores seja substituído por uma máquina e esta deveria tentar enganar o juiz da mesma forma; se a máquina apresentasse comportamento inteligente seria capaz de vencer o jogo metade das vezes (TURING, 1950). Nas ontologias orientadas ao objeto, assunto frequente nestas paragens da internet, o problema ganha contornos mais interessantes.

Se já acreditamos que não há posições filosóficas privilegiadas que justifiquem as conclusões antropocêntricas do pensador é porque é fácil enxergar o agenciamento exercido pelos componentes da rede da qual fazemos apenas parte; e é fácil mesmo, basta ler alguns posts publicados neste mesmo espaço, por exemplo Fernandes (2016) e Cardoso (2016). Os que como eu são menos próximos das nuances filosóficas do tema se perguntam: se a ontologia é achatada, e isso que chamamos de objetos são essencialmente o mesmo que nós, por que parecemos tão diferentes? Uma resposta inteligente deveria convencer o leitor de que na verdade não somos essencialmente diferentes dos objetos que julgamos observar. A resposta que aqui proponho leva em conta não uma definição de inteligência, mas uma definição de mente, mais especificamente uma visão de acordo com a proposta pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce. Continuar lendo