Quentin Meillassoux, Donald Trump, Elvis Presley e o playground da pós-verdade

por Gustavo Rick Amaral

Quentin Meillassoux, Donald Trump, Elvis Presley and the post-truth playground 

[Abstract]
“The objective of this paper is to compare the speculative realism introduced by the French philosopher Quentin Meillassoux in the book “After Finitude” and the kind of realism defended by Charles S. Peirce. The role phenomenology and semiotics have in the Peirce’s philosophical system makes the peircean realism totally incompatible with the speculative realism. The reason is that the anti-correlationist position of Meillassoux is at odds with some basic peircean thesis (like “all thoughts is in signs” – CP 5.253 [1868]).  This comparative study is followed by a description of some elements of the historical (cultural and political) context in which the Meillassoux philosophical project arise
.”

Na obra “Depois da infinitude”, o filósofo francês Quentin Meillassoux (2008) nos apresenta um projeto filosófico cujo ponto central é a reabilitação da distinção entre qualidades primárias e secundárias associado ao objetivo de estabelecer a tese segundo a qual a contingência seria o único princípio absolutamente necessário no universo. No presente artigo, não pretendemos desenvolver uma análise dos argumentos do filósofo e apresentar uma refutação de suas teses. Fosse esse nosso objetivo, acreditamos que um bom começo seria questioná-lo a respeito do problema de auto-referencialidade envolvido na sustentação do princípio acima anunciado. Se o princípio for um pensamento ou uma proposição, seria ele mesmo contingente, i.e., estaria ele mesmo submetido ao princípio (cf. o que Ray Brassier chamou de paradoxo da contingência absoluta – Brassier, 2007, p. 85)? O objetivo deste artigo é fazer, em primeiro lugar, uma comparação de diretrizes e características gerais do realismo especulativo de Meillassoux e da filosofia peirceana (para demonstrar a incompatibilidade entre as duas filosofias) e, em segundo lugar, uma contextualização (no cenário político e cultural contemporâneo) das instigantes propostas teóricas do filósofo francês. Comecemos com um trecho da obra “Depois da Finitude” em que Meillassoux apresenta a tarefa do realismo especulativo.

[Nossa tarefa é] descobrir um absoluto que não seja uma entidade absoluta. É justamente isto que conseguimos com a absolutização da facticidade – não mantemos que uma determinada entidade exista, mas que é absolutamente necessário que qualquer entidade pode não existir. Esta é, de fato, uma tese especulativa uma vez que estamos pensando um absoluto, mas não é metafísico, pois não estamos pensando uma coisa qualquer (uma entidade) que seria absoluta. (Meillassoux, 2008, p.61)

A promessa do projeto de Meillassoux é que, restituída a distinção entre qualidades primárias e secundárias e reestabelecida a possibilidade de se produzir pensamento especulativo, serão reabertas as portas que nos concederão acesso a um mundo (há muito) perdido, um maravilhoso jardim que passou a estar oculto a partir do dia em que embarcamos na filosofia (que Meillassoux chama de) correlacionista. É o correlacionismo (narra o filósofo francês) que, com sua obsessão de apenas nos permitir discursar sobre aquilo que estiver dentro dos limites de nossa experiência possível (aquilo que tiver em relação com o sujeito), tem impossibilitado que desfrutemos deste playground especulativo. A promessa de um retorno triunfal a “le Grand Dehors” (à grande área externa, ao ar livre; “the Great Outdoors”, na tradução para o inglês) está condicionada ao desmonte do correlacionismo. Portanto, o grande antagonista do realismo-especulativo de Meillassoux é o filósofo alemão Imannuel Kant e sua monumental Crítica da Razão Pura. A intenção geral deste combate ao correlacionismo é devolver à filosofia a prerrogativa de lidar com absoluto. Pelo que se entende do obra “Depois da finitude”, desde de Kant, tal prerrogativa tem estado em mãos erradas. De acordo com a leitura crítica de Martin Hägglund, o movimento proposto pelo filósofo francês parece constituir na retirada do absoluto do campo da fé e na sua devolução ao campo do conhecimento.

Meillassoux tem como alvo nada menos que o argumento básico da filosofia transcendental de Kant, que sustenta que não podemos ter conhecimento do absoluto. (…) Como é do conhecimento de todos, Kant delimita a possibilidade do conhecimento com o intuito de “abrir espaço para a fé”. Ao tornar impossível provar a existência do absoluto, Kant torna impossível refutá-lo e, então, reabilita o absoluto como objeto de fé e não de conhecimento.

Em contraste, Meillassoux procura formular uma noção de absoluto que não implica um retorno à ideia metafísica e pré-crítica de um ser necessário. Ele endossa a crítica de Kant a respeito da metafísica dogmática, mas argumenta que é podemos desenvolver um pensamento “especulativo” sobre o absoluto que não sucumba ao estabelecimento de um ser necessário. (Hägglund, 2011, p. 115)

E, de fato, para Meillassoux, o problema parece ser justamente que o vácuo (deixado pela crítica kantiana ao “desabsolutizar o pensamento”) tem sido preenchido por crenças religiosas voltadas para o absoluto. O filósofo francês afirma que o fim da metafísica (entendido como a desabsolutização do pensamento) “consiste justamente na legitimação racional de toda e qualquer variedade de crença religiosa (ou poético-religiosa) no absoluto desde que não invoque nenhuma autoridade além de si mesma” (Meillassoux, 2008, p. 45). Meillassoux é enfático: “ao proibir a razão de fazer qualquer alegação a respeito do absoluto, o fim da metafísica tomou a forma de um retorno exacerbado do religioso” (Ibid).

Dentro do projeto filosófico apresentado na obra “Depois da Infinitude” (2008), Meillassoux afirma ter dois aliados de peso: a matemática e a lógica clássica. À matemática caberia um papel fundamental na proposta de restituição da distinção (há muito falecida) entre qualidades primárias e secundárias. A matemática foi a ciência escolhida para nos dar acesso às qualidades primárias dos objetos. À lógica clássica, especificamente ao princípio da não-contradição, coube papel essencial na derivação da contingência absoluta (enunciada por Meillassoux).

Comecemos pela matemática. Para sermos preciso, comecemos pela visão da matemática apresentada por Meillassoux para colocá-la como via de acesso ao absoluto. Em primeiro lugar: quem vai avisar os matemáticos que eles serão agora nossa interface com o absoluto? Não é certo que eles tenham ficado sabendo dessa incumbência de última hora. As notícias que nos chegam de terras matemáticas e de terrenos filosóficos a ela associados não nos passam a imagem da matemática como um edifício com fundações absolutas, únicas, irrevogáveis, completamente seguras. Deve-se recordar que a última grande cruzada fundacionalista que tivemos no ocidente (o projeto logicista representado pelo Principia de Russell e Whitehead) desembocaram nos teoremas da incompletude de Gödel.

É provável que do século XX em diante passemos a nos referir à matemática no plural, uma vez que haveria uma para cada tipo de fundação (teoria de conjuntos com o axioma da escolha, sem o axioma da escolha, etc.) Bem como qualquer outra coisa que tenha entrado no século XX e tenha conseguido sair viva e funcional do outro lado (o que não é fácil, haja vista o caso do extinto conceito de éter e do moribundo comunismo), a matemática nos é pintada hoje com cores bem diferentes daquelas com as quais ela costumava aparecer para nossos antepassados. Hoje, a matemática nos chega numa embalagem moderna, com uma imagem de entidade múltipla, dinâmica e orientada pragmaticamente (com relação aos princípios estabelecidos em sua base [que “são estes, mas poderiam ser outros”]). É, no mínimo, uma ironia que Meillassoux tenha escolhido a matemática para o papel principal de sua peça sobre a ressureição do absoluto logo depois dos matemáticos, lógicos e filósofos do século XX terem (em geral) se reconhecido incapazes de isolar uma fundamentação primeira, única e absoluta para a matemática.

O realismo especulativo conforme apresentado por Meillassoux requer uma visão da matemática que não é mais única, nem padrão no cenário contemporâneo. O mesmo problema ocorre com relação à lógica e princípios lógicos. Com respeito a este ponto, o projeto filosófico de Meillassoux tem um posicionamento que pode ser classificado como absolutista. De acordo com Newton da Costa (2008, p. 248), o absolutismo (em lógica) considera que “as leis da lógica são invariáveis, absolutas, independentes de tempo, lugar, desenvolvimento cultural e quaisquer outras circunstâncias”. Tanto a dialética como a lógica para-consistente são exemplos de concepções relativistas (i.e., não-absolutistas) da lógica e, justamente por se apresentarem como “concorrentes” ao posicionamento de Meillassoux, deveriam ser objeto de crítica e refutação por parte do filósofo francês. A única justificativa que Meillassoux nos ofereceu para sustentar seu posicionamento absolutista e se contrapor ao posicionamento relativista é que a “dialética e a lógica para-consistente lidam somente com contradições inerente nas proposições sobre o mundo, nunca com contradições reais no mundo” (Meillassoux, 2008, p. 79). O pensador francês desconsidera os debates filosóficos mais recentes sobre contradição real que têm se utilizado de inovações desenvolvidas no campo da lógica ao longo do século XX (cf. seção “contradições e o mundo real”, Da Costa, 2008, p. 232). Com relação especificamente à lógica para-consistente, Meillassoux parece ter uma visão bem estreita de suas implicações filosóficas. Dissemos “parece” porque o espaço que foi dedicado a este tema é exíguo. Segundo o que se pode entender das brevíssimas explanações a respeito da lógica para-consistente, o filósofo francês acredita que este tipo de lógica foi desenvolvida somente para evitar problemas em processos de computação (e não para lidar com fatos contraditórios reais – cf. Meillassoux , 2008, 78-9).

Tivesse Meillassoux chegado com esta proposta ao final do século XIX, ele enfrentaria menos resistência. Teria de responder a menos perguntas. Talvez não teria que se justificar a respeito de auto-referencialdade, a respeito da exigência que a matemática seja considerada nosso instrumento para lidar com o absoluto e a respeito da exigência que o princípio da não-contradição seja irrevogável. Terminada esta breve apresentação, passemos, então, à comparação do realismo especulativo de Meillassoux com a filosofia peirceana. Embora a Peirce seja um filósofo do século XIX, ele parece “ter entendido e aceitado” melhor (prospectivamente) a direção dos ventos do século XX do que Meillassoux, um filósofo do princípio do século XXI.

A distância que separa o realismo peirceano do realismo especulativo de Meillassoux

O projeto anti-correlacionista de Meillassoux é incompatível com a filosofia peirceana. A distância entre Peirce e Meillassoux é tão grande que para mostrá-la, iremos aproximar a filosofia peirceana daquele que pode ser considerado seu adversário filosófico favorito: Descartes. Mesmo tendo elaborado críticas muito incisivas à filosofia cartesiana, fundadora da modernidade filosófica, Peirce nunca pregou um retorno à escolástica. A prova de que manteve alguns dos avanços mais gerais e importantes conquistados pelo espírito cartesiano é que sua própria epistemologia (semiótica) é construída dentro do chamado “primado da representação”. De forma muito geral, a marca deste primado é a constatação de que qualquer discurso filosófico que se possa fazer sobre as coisas existentes é condicionado pelo modo particular como estas coisas (que julgamos existentes) nos aparecem, nos são representadas (este é o gérmen do que Meillassoux chama de correlacionismo). É a partir de Descartes que começa a emergir na filosofia a consciência desta anterioridade (de caráter lógico). Esta é a constatação de que tudo o que sabemos do mundo, só o sabemos a partir de nossas ideias sobre o mundo. Temos acesso ao objeto somente por uma representação dele. A estratégia de Descartes é partir da ideia em direção ao que a ideia representa. Nota-se que, nas meditações, por exemplo, Descartes (ou o meditador) chega à prova da existência (objetiva) de Deus partindo da ideia que Dele se tem na consciência. Outro exemplo é que Descartes (ou o meditador) descobre que a propriedade essencial de todas as coisas corpóreas é a extensão partindo de uma análise da ideia que se tem das coisas corpóreas (ainda que não se saiba, à essa altura das meditações, se tal ideia corresponde a algo objetivo). É partir do representante em direção ao representado. O passaporte para modernidade filosófica parece ser este reconhecimento de que apenas estudando a consciência e seus elementos, i.e., as ideias, as representações (mentais), podemos verificar se há por trás delas os objetos que elas professam representar. Assim a filosofia passa de um cenário em que produz basicamente teorias sobre objetos (sobre “o que há”, sobre o que existe) para um cenário em que produz teorias sobre o (nosso) conhecimento de objetos (sobre o nosso acesso ao que há ou o que deve haver).

Longe de ter abandonado Descartes por completo, o projeto de Peirce acaba por aprofundar uma das principais conquistas da filosofia cartesiana. A teoria da cognição desenvolvida por Peirce em paralelo à sua crítica ao espírito cartesiano tem como ponto nevrálgico a descoberta de que a relação de representação (que está dentro do conceito de signo) é central para explicar as nossas faculdades cognoscitivas. Esta teoria da cognição (alternativa ao sistema cartesiano) teve como ponto de partida uma teoria de categorias (de inspiração kantiana [ao menos na forma]) que tinha por objetivo descobrir quais são concepções mais gerais presentes em todo e qualquer fenômeno, ou seja, as investigações filosóficas de Peirce estão ainda dentro do chamado “primado da representação”, uma vez que partem de uma análise não das coisas existentes (consideradas em si mesmas), mas do modo como elas aparecem à mente. A investigação parte dos fenômenos.

Num livro sobre Descartes e a metafísica da modernidade, Franklin Leopoldo e Silva, introduz, da seguinte forma, um texto sobre a herança cartesiana:

Todos os grandes filósofos modernos e contemporâneos consideram que o primado da representação deve ser visto como um progresso decisivo na marcha do espírito filosófico. O fato de a filosofia tomar como ponto de partida a consciência abriu perspectivas de largo alcance para a ciência, a ética e, de forma geral, para a compreensão do homem e de suas realizações. A relação entre liberdade e responsabilidade, configurada na noção cartesiana de sabedoria, veio conferir à consciência o lugar de centro do universo, ponto ao qual devem ser referidos o conhecimento e a ação. (Leopoldo e Silva, 2005, p. 88-9)

Ao que parece Meillassoux está em desacordo com “todos os grandes filósofos modernos e contemporâneos”, pois demonstra não acreditar que “o primado da representação deve ser visto como um progresso decisivo na marcha do espírito filosófico”. Entretanto, dentro da filosofia moderna, Descartes foi apenas o começo do primado da representação, que atingiria a glória e o ponto de não-retorno no pensamento kantiano. As críticas empiristas da validade do recurso metafísico (a existência de Deus “acessada” via ideias inatas) habilmente manejado por Descartes em seu projeto fundacionalista levariam Kant a propor uma epistemologia “absolute-free”, i.e., uma epistemologia na qual o sujeito cognoscente tem apenas acesso a um mundo já pré-moldado por formas a priori da percepção e do entendimento. Assim, esta epistemologia deixa como resíduo inacessível a coisa-em-si (Ding an Sich).

Enquanto, por uma lado, Meillassoux pretende a reabilitar a possibilidade de se elaborar um discurso filosófico sobre as coisas (que julgamos existentes) de forma independente do modo particular como as coisas (que julgamos existentes) nos aparecem, ou seja, reestabelecer alguma via que nos dê acesso a coisas-em-si; por outro lado, Peirce pretende abolir, de uma vez por todas, qualquer hipótese a respeito de coisa-em-si, qualquer hipótese que estabeleça a existência uma “região” da realidade que seria (absoluta e eternamente) inacessível à experiência humana. Esta anulação de qualquer hipótese a respeito da existência coisa-em-si promovida pela filosofia peirceana é algo essencial ao projeto filosófica de Peirce. A diferença elementar entre estes dois filósofos está na relação deles com o denominado primado da representação. Meillassoux está do lado de fora do primado da representação esforçando-se para reverter a virada copernicana de Kant. Peirce está dentro do primado da representação esforçando-se para aprofundá-lo na medida em que busca uma epistemologia calcada ainda no conceito de representação embora se apresente como alternativa àquelas teorias do conhecimento elaboradas por Descartes e Kant. Para esclarecermos esta pertinência da filosofia peirceana ao primado da representação, devemos começar por observar que o projeto filosófico peirceano parte de uma generalização da pergunta central da filosofia kantiana.

De acordo com Kant, a questão central na filosofia é “como são possíveis os juízos sintéticos a priori ?” Porém, antes desta pergunta, vem a questão como são possíveis os juízos sintéticos, em geral, e de forma mais geral ainda, como o raciocínio sintético é possível? Quando a resposta a este problema geral tiver sido obtida, aquele problema particular será comparativamente mais simples. Este é a fechadura na porta da filosofia.(CP 5.348 [1868])

É justamente a solução teórica que Peirce oferece a este problema central que o leva a se afastar da matriz kantiana (de onde nasce o pensamento peirceano) e se contrapor ao projeto fundacionalista cartesiano. Entretanto, deve-se enfatizar tanto este afastamento como esta contraposição se dão dentro do denominado primado da representação. Prova elementar disso é que a solução peirceana para o problema das sínteses mobilizou uma espécie de ciência geral das representações, a semiótica. Na verdade, a semiótica emerge dentro da filosofia peirceana associada a uma teoria da cognição que foi apresentada por Peirce como uma alternativa às teorias epistemológicas que, ao recorrerem ao conceito de intuição, tornam-se incapazes de fornecer uma explicação aceitável a respeito do funcionamento e da possibilidade do raciocínio sintético. Qual era a “implicância” de Peirce com o conceito de intuição, (conceito, aliás, que cumpre um papel fundamental nas epistemologias de Descartes e Kant)? De forma geral, dentro do campo da teoria do conhecimento, o conceito de intuição designa uma cognição originária (auto-evidente, sempre verdadeira, indubitável).

Especifiquemos melhor, então, esta incompatibilidade entre a epistemologia (de base semiótica) elaborada por Peirce e o conceito de intuição. Se introduzimos na teoria o conceito de intuição para ocupar o papel de fundação do conhecimento (como ocorre em outros projetos filosóficos), então esta teoria passa a admitir a existência de um ponto originário, ou seja, uma cognição (ideia, pensamento ou proposição) que, por princípio, não pode ter suas origens conhecidas. Um resíduo de realidade que não pode ser investigado. Isto nos leva a outra pergunta: qual seria problema em se admitir o incognoscível? Ora, se a teoria admite a existência do incognoscível, então permanece eternamente aberta a possibilidade de um raciocínio indutivo ser “inválido” (i.e., ter sua conclusão falsa ainda que todas as suas premissas sejam verdadeiras), o que inviabiliza, de saída, a consecução do objetivo último que Peirce estabeleceu para sua teoria das categorias e para todo o argumento construído ao longo dos três artigos da série cognitiva. Recordemos que este objetivo último é justamente responder aquilo que considera o problema maior da filosofia: como são possíveis as sínteses, como são possíveis os raciocínios ampliativos, sintéticos? Recordemos também que a resposta peirceana é que o raciocínio indutivo pode ter sua validade fundamentada desde que seja observada uma condicionante básica: tal raciocínio deve ser aplicado por um tempo indefinidamente longo por uma comunidade indefinida de pesquisadores. Neste caso, afirma Peirce, todas as linhas de investigação, todos os processos interpretativos (as semioses), convergiriam para um ponto (que é aquilo que Peirce entende por realidade). Este processo de convergência só pode ocorrer se admitirmos que toda a realidade poderá, num tempo indefinidamente longo, ser recoberta pelo processo representativo levado adiante por uma comunidade indefinida de intérpretes (pesquisadores). Não pode haver regiões da realidade que tenham que (por definição) permanecer escondidas da experiência humana. O projeto filosófico peirceano não pode admitir a hipótese de que haja algo que não pode (por definição) ser conhecido. Não há espaço para a “coisa-em-si”. Caso se reconheça (a partir de dentro da epistemologia peirceana) a intuição e, por este motivo, a existência de algo incognoscível, a resposta que Peirce pretende oferecer ao que considera o problema maior da filosofia deixaria de funcionar (para análise mais detalhada, cf. Amaral, 2014).

Assim, podemos resumir nos dois pontos (seguintes) os motivos pelos quais a filosofia Peirce simplesmente não poderia ser entendida fora do que foi denominado neste texto de primado da representação:

  1. As categorias básicas da filosofia peirceana são estabelecidas a partir da perscrutação do campo da experiência (realizada dentro do âmbito daquela quase-ciência que Peirce denominou de fenomenologia).
  2. A solução para o problema central da filosofia peirceana mobiliza uma ciência geral das representações (a semiótica)

Portanto, na linguagem de Meillassoux, os “traços correlacionistas” da filosofia peirceana são irrevogáveis. Exceto no caso de pensarmos uma versão despeirceanizada da filosofia peirceana (o que não seria inadequado ao cinismo contemporâneo que nos propõe café descafeinado, cerveja sem álcool e carne de soja).

Terminada esta parte em que comparamos as filosofias de Peirce e Meillassoux, nosso objetivo a partir deste ponto é perguntar de onde vem a necessidade (se, de fato, houver alguma) de recorrer ao absoluto, de onde vem urgência de se voltar à “grande área externa”, o que há de atrativo neste playground especulativo do qual trata Meillassoux. E, se nos restar algum espaço-tempo, também pretendemos perguntar para onde vai (ou pretende ir) esta tendência filosófica contemporânea.

A reversão da virada copernicana de Kant e o cenário contemporâneo

Como deve ter ficado claro a partir do exposto na seção anterior, Meillassoux não é um grande fã de Kant e do primado da representação. Na verdade seus esforços filosóficos estão quase todos voltados para deposição deste primado da representação cujo ponto de não-retorno é a virada copernicana promovida por Kant. Meillassoux parece ter urgência em libertar a filosofia dos compromissos estabelecidos progressivamente pelo primado da representação ao longo da idade moderna. Parece estar completamente decidido a reverter o movimento de auto-crítica do pensamento moderno que culminou em Kant. Parece ávido por querer falar de algo que esteja além de nossas representações, esteja fora de nossa experiência possível. Ansioso por falar a respeito de algo sobre o qual a filosofia moderna, sobretudo, a partir de Kant, não nos deixa falar, algo a respeito do qual solicita-nos silêncio. Difícil e respeitoso silêncio.

Devemos recordar que o primado da representação que marca a filosofia moderna nasce dentro do projeto fundacionalista cartesiano. O intuito de Descartes era encontrar fundações completamente seguras para o nosso conjunto de crenças. Em desafio ao cético, Descartes se propôs a demonstrar não apenas a possibilidade do conhecimento como a possibilidade do conhecimento erigido sobre fundações inabaláveis. Uma força que parece ter dirigido a filosofia moderna para este primado da representação é justamente necessidade de fundamentação, a necessidade de justificativa na construção do conhecimento, inclusive (o que é essencial) na elaboração do próprio discurso filosófico. A centralidade do conceito de verdade dentro da epistemologia (proposta por cada filósofo do período moderno) puxou a filosofia para esse caminho. Até mesmo no caso em que aqueles sistemas filosóficos elaborados no período pré-crítico da filosofia moderna (i.e., de Descartes a Kant) recorriam ao absoluto, este movimento era realizado em nome do estabelecimento de um caminho seguro para verdade. Um modo seguro de fixar nossas crenças. À medida que vai minguando esta força que vinha operando como uma espécie de auto-crítica do pensamento moderno e que vinha progressivamente estabelecendo limites à razão, vai ganhando espaço no cenário filosófico o riso cínico dos relativistas diante de conceitos centrais (à epistemologia) como a verdade. Acreditamos que dificilmente sem o clima geral relativista do cenário contemporâneo (não apenas na filosofia como pretendemos demonstrar a seguir), uma proposta filosófica de retorno ao absoluto poderia vingar.

Para nos encaminharmos para o fechamento deste texto, apresentemos nesta penúltima seção, de forma breve e ensaística, uma leitura a respeito de algumas mudanças no cenário contemporâneo que acreditamos ensejar o tipo de visão especulativa defendida por Meillassoux. Pretendemos descrever mudanças (sem intenções de desenvolver uma análise exaustiva) que podem ser observadas nos campos da cultura e da política. Comecemos pela cultura.

Com a internet, conseguimos, pela primeira vez na história da espécie, distribuir microfones para todos. Hoje, todos estamos com uma câmara na mão (ainda que nos faltem na cabeça ideias cujo registro e divulgação valham a pena). Agora que podemos conhecer o que todos têm a dizer deparamo-nos com um fenômeno que decepcionaria mesmo o mais pessimista dos iluministas: em geral, as pessoas não estão interessadas na verdade, no “verdadeiro” conhecimento e mesmo quando se dizem interessadas em alguma verdade demonstram ter uma notável preguiça ou incapacidade de justificar suas crenças, de apresentar evidências ou argumentos. Aos olhos contemporâneos, a verdade é um conceito démodé. Ela é chata, desagradável e pesada. Inadequada para tempos leves, fluidos.

No vasto mundo que se estende para além dos muros do ambiente acadêmico, encontramos diversos sintomas dessas mudanças com relação ao modo como entendemos o que é verdade e o modo como tratamos este conceito (i.e., a sua importância relativa dentro de nossos sistemas conceituais). Um dos mais evidentes desses sintomas é o refúgio que muitos buscam em universos ficcionais. Não é incomum hoje encontrarmos na internet, em forma de vídeos para o youtube ou na forma de podcasts, pessoas discutindo (às vezes por horas a fio) conjuntura política de universos ficcionais. Debates intermináveis sobre a “geo”-política intergaláctica de filmes como Star Wars. É possível que os seres humanos sempre tenham tentado escapar da realidade buscando refúgio na ficção, mas o que parece ser novo é a escala em que isso é feito, a “quantidade” de tempo e energia dedicadas a tais tarefas que começam a se desenhar como versões contemporâneas de exercícios de pura especulação. Aparentemente, estamos a ponto de formar novos tipos de especialistas: o ficcional-expert. Por exemplo, o físico de terras fantásticas, o químico que trabalha com tabelas periódicas construtivas repletas de elementos químicos inexistentes, o cientista político de lugares imaginários, o antropólogo de povos extraterrestres “saídos” de filmes e livros de ficção científica, o historiador de space opera, o economista de universos fantásticos, etc.. Neste último caso, suponha toda uma vida, toda uma carreira dedicada ao estudo das flutuações econômicas que atingem milhares de pessoas fictícias residentes em universos ficcionais. Abandonada qualquer referência ao mundo real, estas pessoas ficariam somente com a coerência e consistência internas desses universos (uma espécie de matemática pura [seguindo este raciocínio é difícil deixar de se lembrar que foi justamente a matemática que Meillassoux escolheu para figurar em primeiro plano na sua apologia do pensamento especulativo).

A internet tem se mostrado um ambiente acolhedor para todos aqueles que ou desdenham da verdade ou tenham preguiça com os métodos a ela relacionados. A internet compôs um ambiente realmente aconchegante para aqueles que, por menosprezo aos fatos, demonstram-se inabilitados ou indispostos para a tarefa elementar de checar a validade das informações que lhes chegam pela rede e não possuem “origem conhecida”. Assim, rumores, fofocas, factoides, boatos e mentiras se espalham com uma velocidade muito grande. Dentro das redes sociais, um indivíduo recebe, de forma direta, informações de pessoas próximas que acabam por se constituir em fontes nas quais este indivíduo confia mais do que as fontes oficiais e midiáticas. Boatos e mentiras compartilhadas nestas condições são geralmente tomadas como verdades. Estas condições são somadas ao viés cognitivo da confirmação (a tendência [já confirmada empiricamente diversas vezes] das pessoas em continuarem a acreditar naquilo que já acreditam “escondendo-se” de evidências contrárias e enfatizando evidências confirmatórias [cf. Kahneman, 2011, p. 80-1]). Há ainda um terceiro fator: a formação de “grupos-bolha”. Da mesma forma que os cérebros dos indivíduos parece ter evoluído para confirmar e acreditar, as redes sociais que surgiram no ciberespaço parecem ter sido desenvolvidas com o mesmo viés de confirmação do indivíduo, porém ampliado para um nível supra-individual. Assim, pela própria natureza da composição dos grupos presentes em redes sociais, a tendência é que os membros de uma rede social tenham acesso somente a informações que tendam a confirmar aquilo que já acreditam. Este pequeno mosaico que pintamos a respeito dessa tendência contemporânea (bem clara em ambientes virtuais) de “dar as costas para verdade e para os fatos” nos leva diretamente para o segundo campo do qual prometemos tratar nesta seção: a política.

Num artigo intitulado “A arte da mentira”, publicado no dia 10 de setembro de 2016, o semanário inglês “The Economist” apresenta Donald Trump (empresário multimilionário e estrela de reality-show televisivo que foi eleito no mês de novembro deste mesmo ano presidente dos Estados Unidos da América) e sua campanha decididamente pós-política como claros sinais que entramos na era da pós-verdade (ao menos no campo político)[1]. Pela descrição do artigo, Trump vive num reino fantástico onde “a certidão de nascimento do presidente Barack Obama foi falsificada, o presidente (ele mesmo) fundou o Estado Islâmico (ISIS), os Clintons são assassinos e o pai de um rival esteve com Lee Harvey Oswald antes do assassinato de John F. Kennedy” (Art of the lie, 2016). Não é nenhuma novidade que políticos mintam descarada e sistematicamente, mas o que parece ser novo é o fato de que as afirmações feitas por políticos como Trump não guardem e nem pretendam guardar (mesmo que indiretamente) relação alguma com a verdade estabelecida ou com os fatos. O deboche rodrigueano está se transformando em prática no campo da política: “pior para os fatos”. Mesmo quando contestados, desmascarados ou contrariados pelos fatos, estes políticos não demonstram pudor algum em continuar sustentando suas as afirmações como se nada tivesse acontecido e como se não tivessem obrigação alguma em justificar o que afirmam. De acordo com o artigo, o termo “pós-verdade” consegue isolar o ponto central do que é novo neste cenário: “a verdade não é contestada ou falsificada, mas ela tem importância secundária” (Art of the lie, 2016).

Aqueles jornalistas que se julgam herdeiros dos iluministas (i.e., todos aqueles cujas expressões faciais ainda se enrugam diante da união estável e duradoura entre informação e entretenimento) temem por seus empregos. Em artigo publicado no periódico literário Meanjin, a editora de política do “Guardian Australia”, Katharine Murphy, levanta a seguinte questão: se os fatos não contam mais, qual seria então o papel do jornalismo.

Temos que entender que agora nossas práticas profissionais se movem dentro de um ambiente de pós-verdade, onde nossas audiências podem cada vez mais escolher existir confortavelmente dentro de bolhas selecionando informações e comentários que reforçam suas visões e rejeitando outras visões. (Murphy, 2016).

Voltemos ao tema central desse texto: a proposta realista-especulativa de Meillassoux. Apresentadas de forma breve estas características novas do cenário cultural e político, já estamos em condições de lançar a hipótese de que o pensamento de Meillassoux está respondendo, mesmo que inconscientemente, às exigências de um tempo que cansou do peso e sisudez do conceito de verdade. Derrotado o correlacionismo, a filosofia (de acordo com o projeto filosófico de Meillassoux) seria resgatada do primado da representação e seria posta em liberdade. Talvez não seja boa ideia solicitar à filosofia que volte a lidar com (ou falar em nome de) o absoluto justamente no momento histórico em que o absoluto (travestido de fundamentalismo religioso e discurso político da pós-verdade) nos ameaça de forma tão ensandecida. Precisamos de menos e não de mais gente sobre o palanque esbravejando em nome do absoluto. De que adianta pensar que o filósofo conseguiria gritar mais alto que os fanáticos religiosos e os ideólogos da intolerância e do preconceito se na plateia estão todos (ou quase todos) surdos? Deve-se recordar que o discurso político da pós-verdade elaborado por Trump nestas eleições não estava apenas dando as costas para verdade, para os fatos, mas estava sendo dirigido para os preconceitos mais arraigados e os mais vis sentimentos de intolerância das pessoas. Sob as condições atuais, sobretudo, políticas, é muito perigosa esta área externa à qual Meillassoux nos convida. Nestas condições, os brinquedos do playground de Meillassoux nos parecem muito perigosos. Não é certo que este parque deva ser aberto ao público. Os riscos do proposto retorno do absoluto são altos. Tomar este caminho só se justifica se o absoluto (cuja segunda vinda nos é anunciada por Meillassoux) for cumprir uma função realmente essencial dentro do discurso filosófico e que não poderia ser cumprida por nenhum outro conceito.

 

Qual a função do absoluto em Meillassoux?

Este movimento filosófico que propõe que batamos em retirada do denominado primado da representação só pôde vir à luz quando já estava muito fraca e ineficiente a força que (através do período moderno) nos guiou desde Descartes até Kant. De forma geral, podemos afirmar que preocupação central dos filósofos modernos era validade do conhecimento. Um indício de que, dentro do realismo especulativo, a força que nos guiou em direção ao primado da representação está praticamente extinta é que Meillassoux não pretende ressuscitar o absoluto para colocá-lo no papel de fundação do conhecimento. Ao contrário da epistemologia cartesiana, que utilizava o absoluto como recurso para estabelecer uma fundação completamente segura e inabalável para nossas crenças (ou, ao menos, estabelecer a possibilidade se obter conhecimento seguro sobre o mundo), a filosofia realista-especulativa de Meillassoux utiliza o absoluto para estabelecer a contingência como regra (o que denomina de hipercaos) e, por tabela, estabelecer a impossibilidade se obter conhecimento completamente seguro sobre o mundo. Ao contrário da epistemologia kantiana, que retirou o absoluto do campo do conhecimento humano para apresentar os limites deste, a filosofia realista-especulativa de Meillassoux reestabelece o absoluto para libertar o discurso filosófico das limitações artificialmente criadas pela Crítica kantiana e, assim, proclamar um retorno a uma terra onde poderemos construir o conhecimento sem nos preocuparmos com validade ou condições de possibilidade de qualquer tipo.

Então, contra Descartes, Meillassoux dá vitória a cético (pois, mesmo que tenhamos acesso ao absoluto não poderíamos alimentar jamais a esperança de algum conhecimento absoluto num mundo necessariamente contingente). Assim, embora não embarque no projeto fundacionalista de Descartes, Meillassoux retém algo do recurso metafísico cartesiano (o absoluto). Contra Kant, Meillassoux dá vitória à livre especulação. Assim, neste caso, deve-se dirigir uma pergunta ao realista-especulativo: o retorno do discurso (filosófico) em torno do absoluto sem restrições impostas por qualquer tipo de filosofia crítica seria a ressureição de uma espécie de arena de intermináveis debates (nos dizeres de Kant)? Ora, se for essa a intenção de Meillassoux com as teses apresentadas na obra “Depois da finitude”, ele realmente não deveria se preocupar, pois já existe um ambiente onde todos falam com ares de absoluto sem preocupação alguma com fundamentação, justificativa ou evidências de qualquer tipo. Este ambiente chama-se internet. As redes sociais já são arenas de intermináveis debates. Os anseios por liberdade especulativa expressos por carregada linguagem filosófica nesta obra modelam com perfeição o ambiente da internet, sobretudo, das redes sociais. Basta que convidemos os filósofos a fazer filosofia metafísica à la internet.

Na proposta de realismo especulativo de Meillassoux, nota-se que o absoluto tem características muito peculiares se o compararmos com “absolutos” de outras épocas. De acordo com o que podemos entender do proposto pelo filósofo francês, o absoluto não deve voltar para cumprir um papel positivo no sistema filosófico. Descartes, por exemplo, recorre ao absoluto (Deus: substância eterna, perfeita, infinita…) para poder derivar, dentro de seu sistema filosófico, garantias para o nosso conhecimento do mundo externo. No caso de Meillassoux, o absoluto parece entrar para “provar” que somos livres para especular sobre o que há. Com a referência ao absoluto, Meillassoux não pretende encontrar fundações para o conhecimento humano, mas reestabelecer a liberdade incondicional do pensamento. Enquanto o papel do absoluto na epistemologia cartesiana é fundacional, na filosofia realista-especulativa sua função parece ser puramente negativa: impedir a edificação de qualquer limite ao pensamento.

Ora, se o objetivo do projeto filosófico de Meillassoux é impedir que se levantem restrições arbitrárias ao pensamento e ao conhecimento científico, ele não precisaria de ter feito todo esse contorcionismo teórico para recriar um acesso ao absoluto, às coisas-em-si-mesmas. Se o intuito era solicitar à filosofia crítica que não bloqueasse o caminho do conhecimento, ele poderia ter simplesmente ter acatado a sugestão de Peirce: não levante a hipótese da coisa-em-si, não há motivos para supor nada absoluto. No lugar de procurar uma nova via para acessar as coisas-em-si-mesmas, o filósofo francês poderia ter abertão mão, de uma vez por todas, de levantar qualquer hipótese sobre a existência de coisas-em-si. Na filosofia peirceana, desenvolvida depois de Kant e em pleno primado da representação, a metafísica tem lugar. Entretanto, subordinado. Vigiado pela ciência geral das representações, a semiótica (ou lógica num sentido amplo).

Quando lemos as “Meditações de Filosofia Primeira” de Descartes, entendemos perfeitamente o papel do absoluto em seu sistema filosófico. Sem um absoluto (digno deste nome) não haveria como partir do estabelecimento da certeza com relação à existência do cogito para o estabelecimento da certeza com relação à existência do mundo externo. É um papel fundacional. Um papel digno da grandiloquência do absoluto. Já o absoluto de Meillassoux não cumpre papel fundacional. Que faz ele então? Se a ideia é propor um retorno do absoluto, que ele volte de forma digna, altiva, augusta. Que regresse em suas mais pomposas vestes. Que retorne, então, numa função digna de sua grandeza. Observado desta perspectiva, o absoluto de Meillassoux é chocho, não faz jus ao próprio nome. Na mais complacente das leituras, é um absoluto light.

Suponha a seguinte situação: uma equipe de cientistas convocou uma coletiva de impressa para anunciar o desenvolvimento de uma máquina para ressuscitar pessoas. Entretanto, devido às limitações tecnológicas, a máquina poderia trazer de volta à vida apenas uma pessoa e, por votação interna na equipe, os cientistas decidiram que o indivíduo a ser ressuscitado seria Elvis Presley. Quando os jornalistas perguntaram para o chefe da equipe quando seria o primeiro show com o Elvis revivificado, a resposta foi decepcionante: “na verdade”, disse o chefe da equipe científica, “a máquina ainda não consegue restaurar as características originais e, por isso, o Elvis que voltará à vida não será cantor, ele será contador. Sinto muito desapontá-lo, mas é o que temos para hoje”.

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[1] O termo “pós-verdade” foi utilizado pela primeira vez em 2010 pelo blogger David Roberts (2010) num site sobre ambientalismo (chamado Grist).

Referências:

AMARAL, G. Rick. (2014) Os conceitos de representação e recursividade na obra do jovem Peirce. Tese de Doutorado. PUC-SP.

DA COSTA, Newton (2008). Ensaio sobre os fundamentos da lógica. Ed. Hucitec. São Paulo.

Art of the Lie (artigo publicado no Economist no dia dez de setembro de 2016) disponível em: http://www.economist.com/news/leaders/21706525-politicians-have-always-lied-does-it-matter-if-they-leave-truth-behind-entirely-art Acesso em: 07 de novembro de 2016

BRASSIER, Ray. (2007). Nihil Unbound: Enlightenment and Extinction. Palgrave Macmillian

HÄGGLUND, Martin. (2011) Radical Atheist Materialism: A Critique of Meillassoux In Levi R. Bryant, Nick Srnicek & Graham Harman (eds.), The Speculative Turn: Continental Materialism and Realism. Re.Press.

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