A leitura “espacializante” de Meillassoux da metáfora kantiana da revolução copernicana

por Gustavo Rick Amaral

[Abstract]:

“The main objective of this text is to present a study on the Meillassoux analysis of the Kantian metaphor or analogy of Copernican revolution. In his analysis (presented in the book “after finitude” Meillassoux focus on the spatial relation involved in this Kantian metaphor or analogy. This particular focus is part of a strategy (common to all others philosophers of Speculative Realism) to present Kant as a philosopher who contributed greatly to the anthropocentrism in the modern era. In this paper, we sustain that the Kantian (Copernican) revolution in epistemology represents a philosophical trend that strives to combat anthropocentrism. The Kantian metaphor or analogy can be read in this same key.”

Na obra “depois da finitude”, Meillassoux (2008) introduz o termo correlacionismo para designar a tradição filosófica que limitou o pensável, o cognoscível ao campo do que poder ser correlacionado à experiência (possível) do sujeito. Do ponto de vista dos filósofos do Realismo Especulativo (RE), sobretudo, Meillassoux, o correlacionismo fundamental é estabelecido por Kant na Crítica da Razão Pura. Para os realistas especulativos, a crítica kantiana (no campo da epistemologia) é o pecado original da filosofia. Em “depois da finitude”, Meillassoux desenvolve uma análise da célebre metáfora da revolução copernicana à qual recorreu Kant no prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura. Kant entende que a tarefa de sua crítica no campo da epistemologia é promover um movimento de inversão semelhante àquele operado por Copérnico no campo da ciência. Acreditamos que a análise de Meillassoux desta metáfora é uma excelente síntese de um movimento geral central ao RE: a crítica ao correlacionismo (ou ao que Harman denomina “filosofia do acesso).

A tese principal da análise de Meillassoux é que a revolução copernicana de Kant é, na verdade, uma contra-revolução ptolomaica (2008, p. 118). A revolução de tipo copernicano operada por Kant no campo da epistemologia é, na verdade, uma revolução de tipo ptolomaico operada (neste campo) contra a verdadeira revolução copernicana feita no campo científico. Esta tese que considera ptolomaico o movimento operado pela crítica kantiana está associada a uma das principais teses de Meillassoux nesta obra, saber, a ideia de que a ciência possui um “modo não-correlacional de conhecimento”, ou seja, um caráter eminentemente especulativo (2008, p. 119).

A revolução copernicana no campo científico é entendida como um descentramento. A contra-revolução ptolomaica no campo epistemológico é entendida como um centramento. Nesta, os objetos passam a orbitar o sujeito.

Esta análise que Meillassoux nos apresenta da metáfora kantiana é feita sob uma perspectiva muito específica. Esta análise focaliza apenas os aspectos espaciais “em jogo” na metáfora. A escolha dessa perspectiva obviamente não é casual. Ela corrobora com uma tendência muito geral do movimento filosófico do RE: a consideração de Kant e a “tradição filosófica do correlacionismo” como promotores de ideias e ideais antropocêntricos. Bryant (2011, p. 38), outro grande representante do RE, afirma que, no coração do correlacionismo, está um “profundo antropocentrismo”.

Antes de adentrarmos na análise que faremos da análise de Meillassoux, expliquemos de forma muito breve o aparato teórico ao qual recorrermos neste texto. Embora acreditemos que não haja evidência textual na Crítica da Razão Pura para sustentar a afirmação de que a metáfora kantiana da revolução copernicana pode ser classificada como (o que se denomina no campo da linguística cognitiva de) metáfora conceitual, a leitura que Meillassoux faz da metáfora kantiana nos leva a crer que ele a considera uma espécie de metáfora conceitual. A teoria das metáforas conceituais foi elaborada no campo da linguística cognitiva no início da década de 1980 pelo linguista George Lakoff e pelo filósofo Mark Johnson. De acordo com esta teoria (Lakoff e Johnson, 1980; Lakoff, 1993), as metáforas conceituais funcionariam como construções simbólicas complexas que emergem na linguagem e no pensamento para organizar/estruturar domínios abstratos (da vida cognitiva) com base em domínios concretos da experiência. Por exemplo, para falarmos e pensarmos sobre ideias, que são entidades abstratas, geralmente recorremos a um campo mais próximo de nossa experiência direta. No caso da metáfora conceitual IDEIAS SÃO PLANTAS, utilizamos o campo “plantas” para tratarmos de “ideias”. As ideias dele começaram a dar bons frutos muitos anos depois; “Ela tinha uma imaginação muito fértil”; “Não sei quem plantou essas ideias na sua cabeça” (Lakoff e Johnson, 1980, p. 47). Assim, uma metáfora conceitual possui um domínio-fonte e um domínio-alvo. No caso do exemplo da metáfora “IDEIAS SÃO PLANTAS”, o domínio-fonte é planta e o domínio-alvo é ideia.

No texto do prefácio (à segunda edição) da Crítica da Razão Pura, Kant não pretende construir uma metáfora conceitual sobre a ideia de revolução copernicana. Ele pretende utilizar a noção de inversão de elementos de um sistema (presente na revolução copernicana) para fazer uma comparação com sua proposta teórica. Na verdade, Kant apenas nota uma semelhança (a inversão de elementos) entre sua proposta teórica e a proposta teórica de Copérnico. Temos, neste caso, dois domínios abstratos. Logo, Kant não pretende explicar algo pertencente a um campo abstrato (sua proposta teórica) com base em algo pertencente a um campo concreto (i.e., da experiência direta) e, por este motivo, a metáfora kantiana não pode ser considerada uma metáfora conceitual (exceto no caso em que consideremos as ideias de Kant muito mais complexas e distantes do cotidiano se comparadas às de Copérnico, o que poderia nos levar a uma versão estendida do conceito de metáfora conceitual). Enfatizamos este ponto, pois, em sua análise, Meillassoux parece considerar a metáfora kantiana da revolução copernicana uma metáfora conceitual. E esta metáfora conceitual teria como domínio-fonte as relações espaciais da revolução copernicana.

Na leitura de Meillassoux da metáfora kantiana, a revolução copernicana operada originalmente no campo espacial (distribuição de corpos celestes num espaço) passa a corresponder a uma revolução num campo mais abstrato, o conhecimento (humano). A revolução operada por Copérnico na relação entre o Sol e a Terra (e também os demais planetas) no campo cosmológico passa ter correspondências (mapeamentos) na revolução operada por Kant na relação entre Sujeito e Objeto no campo do conhecimento. Nessa leitura, a metáfora kantiana parece ser considerada uma metáfora conceitual cujo domínio-fonte é (o conjunto de relações espaciais em jogo em) a revolução copernicana no campo cosmológico e o domínio-alvo é (o conjunto de relações espaciais em jogo em) na revolução copernicana de Kant no campo epistemológico. Na análise de Meillassoux, por um lado, Copérnico coloca o Sol no centro do sistema planetário e relega a Terra a uma posição periférica, o que significaria retirar poder e prestígio do ser humano; e, por outro lado, Kant coloca o ser humano no centro do campo do conhecimento e, assim, “empoderaria” (para utilizarmos um desses saborosos termos contemporâneos) o sujeito em detrimento do objeto. Nessa leitura, Kant emerge como um anti-copérnico e a crítica kantiana seria uma contra-revolução ptolomaica que operaria um movimento de centramento contra o movimento de descentramento representado por Copérnico. Já deve estar claro que Meillassoux “fica” no domínio-origem (de suas análises) da metáfora kantiana.

A inversão fundamental de que trata Kant ao recorrer metaforicamente à revolução copernicana não é uma relação espacial, mas uma relação teórica, uma relação entre ideias. O ponto de contato que Kant enxerga entre sua proposta teórica e àquela de Copérnico é que este atinge uma explicação satisfatória no campo da ciência ao inverter elementos dentro de um sistema (“trocar” a posição de corpos celestes). Kant considera que o movimento teórico da Crítica da Razão Pura opera uma inversão semelhante de elementos de um sistema. Neste caso, o sistema é o campo do conhecimento (humano). E, de modo diverso da inversão copernicana, Kant não “apenas” troca elementos de posição. A crítica kantiana troca funções ou papéis dos elementos da relação sujeito-objeto. Funções que antes eram cumpridas por objetos (como a “contribuição” para a possibilidade do conhecimento a priori) ficam a cargo do sujeito. Portanto, ocupar o centro do sistema na metáfora kantiana não é o mesmo que ocupar o centro do sistema na revolução copernicana. Neste sentido, Kant é o ponto de virada fundamental dentro da modernidade filosófica que vai criar as condições para que ataques sejam desferidos diretamente contra o coração do antropocentrismo: a racionalidade humana. Embora Meillassoux e os demais tenham a tendência a ler a metáfora kantiana de forma “espacializada” e considerar a crítica kantiana como um movimento de centramento, o que obviamente corroboraria o antropocentrismo moderno, parece-nos que esta metáfora deve ser lida numa chave epistemológica (ou lógica). Assim, a crítica kantiana emerge como uma lição de humildade. Uma, não. A lição fundamental de humildade no campo da epistemologia. A leitura com foco nas relações espaciais da metáfora cumpre para Meillassoux um papel importante na estratégia geral de suas propostas filosóficas. O papel de apresentar Kant como um bastião do antropocentrismo e apresentar sua proposta filosófica como uma alternativa não-antropocêntrica. Entretanto, se desviarmos o foco das relações espaciais (domínio-fonte da leitura que Meillassoux desenvolve) para as relações entre ideias dentro de explicações teóricas às quais a acreditamos que metáfora kantiana se referem, notaremos que restituiremos uma perspectiva a partir da qual Kant emerge como uma filosofia anti-antropocêntrica, uma filosofia que se propõe justamente a limitar capacidades humanas que, uma vez “infladas”, mostraram-se a essência da antropocentrimo moderno.

Referências:

BRYANT, Levi. (2011). Democracy of objects. Michigan: Open Humanities Press

MEILLASSOUX, Quentin. (2008). After finitude: an essay on the necessity of contingency. Continuum.

KANT, Immanuel. (2013 [1787]) Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian.

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