Cultura e hipertelia do objeto técnico: Reconversão industrial em um mundo pandêmico e pós-pandêmico

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por Isabel Jungk

[Abstract]: “The economic crisis generated by the COVID-19 pandemic raised the issue of the need for industrial reconversion, which can be understood from the perspective of a new technical culture defended by Simondon and his concept of hypertelia, according to which, in new contexts,  technical objects tend to mismatch in relation to their excessive specialization in order to perform new functions. In a world marked by the relationship between man and his technical creations, in which, due to various biosocial factors, pandemics may be increasingly frequent and intense, a new consciousness and awareness regarding the design of machines and industries may emerge, with a view to making them more open and adaptable to frequent transformations.”

A contemporaneidade está marcada pela relação do homem com suas criações técnicas das quais dependem, em grande medida, as relações ambientais, sociais, econômicas e políticas. Com a crise sanitária desencadeada pelo surto do novo corona vírus em 2019, muitas indústrias foram levadas à chamada reconversão industrial. O conceito tem sido usado em diferentes contextos e, num primeiro momento, o fenômeno da reconversão significou modificar rapidamente o foco das plantas industriais para fazer frente à crise e atender às demandas crescentes de insumos hospitalares. Esse tipo de reconversão já é conhecido, e envolve a mudança produtiva orientada por transformações conjunturais que elevam a demanda por determinados produtos enquanto dura uma situação excepcional, como, por exemplo, a que é praticada por indústrias, tanto por iniciativa espontânea ou a pedido e até mesmo exigência do Estado, em países em situação de guerra que, para produzir equipamentos bélicos, deixam de fabricar itens de baixa ou nenhuma necessidade naquele período.

Com a Covid-19, uma verdadeira situação de guerra foi travada, e foram muitas as empresas que redirecionaram seus recursos técnicos e humanos para a fabricação de álcool gel, máscaras e respiradores, entre outros itens para o combate à pandemia. No Brasil podem ser citadas, entre outras, as iniciativas da metalúrgica Gerdau, que se dispôs a produzir 400 litros de álcool 70%; a Ford, que anunciou a produção de 50 mil máscaras de proteção facial; a Mercedes-Benz, que teve a iniciativa de testar, em parceria com o Instituto Mauá de Tecnologia e profissionais da área médica, um novo modelo de respirador utilizando peças da indústria automotiva; e a WEG, empresa de engenharia elétrica que firmou acordo a Leistung, empresa de equipamentos médico-hospitalares, para a produção de 500 respiradores, conforme Queiroz (2020).

Após o choque inicial causado pelas medidas de isolamento social e lockdown (confinamento ou bloqueio total), e a consequente queda drástica na atividade econômica, o mundo está gradualmente entrando em um segundo estágio que busca a reabertura e retomada da economia e, durante o qual, embora cada país enfrente situações peculiares, a principal responsabilidade de governos e empresas reside em mantê-las ativas e reter seus trabalhadores a fim de evitar o encolhimento ainda maior da economia e viabilizar sua recuperação, como afirma a diretora do FMI, Kristalina Georgieva (2020). Nessa segunda fase, observa-se a preocupação com outra forma de reconversão industrial, mais profunda do que aquela mais rápida e conjuntural do início, e que se propõe a responder aos efeitos da crise em médio e longo prazo, adaptando-se às exigências sociais e econômicas de um novo estágio, alterando o conteúdo de determinadas indústrias cujo foco produtivo tornou-se obsoleto.

O bônus econômico que uma reconversão nesses termos, mais ampla e que vá além da situação emergencial, poderá gerar é evidente (BRASIL ATUAL, 2020), tais como a reindustrialização, a diminuição da dependência de importações, o aproveitamento de parques industriais que se encontram fechados, e a consequente manutenção empregos bem como a geração de novos de alta qualificação. Todavia, toda forma de reconversão exige investimentos e, quanto mais determinada for a função de uma indústria e de seu maquinário, menor será sua margem de indeterminação e, portanto, maior sua dificuldade e custo para se adaptar a novas conjunturas. Assim, para além dos benefícios de uma reconversão industrial após o surto, é possível pensar em outra consequência mais estruturante a longo prazo: o planejamento e surgimento de plantas industriais e maquinários mais flexíveis no futuro.

Gilbert Simondon, tecnólogo e pensador das relações humano-técnica, foi defensor de uma nova cultura técnica capaz de exercer uma função reguladora, uma mediação adequada e necessária entre o homem e seu mundo dos objetos técnicos, despertando a consciência da sociedade acerca da natureza das máquinas, de suas relações mútuas e com o ser humano, e dos valores implicados nessas relações (MEOT, 2007, p. 35). Para tanto, ele procurou compreender as relações genéticas entre seres humanos e técnicos – no sentido de serem criadoras e geradoras –, voltando-se para a observação e o estudo do modo de concretização e existência peculiar dos seres técnicos.

Simondon foi um crítico daquilo que chamou de hipertelia, conceito que se refere à margem de determinação de um objeto técnico, isto é, sua capacidade menor ou maior para desempenhar tarefas além daquelas para as quais foi inicialmente concebido. Para o filósofo (MEOT, 2007, p. p. 71), “a evolução dos objetos técnicos manifesta fenômenos de hipertelia que dão a cada objeto técnico uma especialização exagerada e o desadaptam em relação a uma mudança, ainda que ligeira, que se produza nas condições de utilização ou de fabricação”. Ao desadaptar-se da função para a qual foi projetado, seja por uma mudança no meio ou mesmo por um uso disruptivo, o objeto técnico pode desempenhar funções diferentes daquelas para as quais havia sido destinado inicialmente, rompendo sua especialização exagerada e mostrando novos potenciais a serem explorados.

Cada objeto técnico possui um esquema que estrutura as relações entre suas partes e constitui sua essência, e que pode adaptar-se de duas maneiras às condições materiais e humanas de sua produção: primeiro, cada objeto pode adaptar-se para utilizar o melhor possível os caracteres elétricos, mecânicos e inclusive químicos dos materiais que o constituem, isto é, pode adaptar-se de uma forma aperfeiçoada à tarefa para a qual foi feito, mantendo sua autonomia como ente ou indivíduo técnico; e, em segundo lugar, o objeto técnico pode ser adaptado através de um fracionamento de seu todo com vistas a outro tipo de uso específico, que sacrifica sua autonomia e unidade, mas que será capaz de aproveitar seus elementos na configuração de um novo ente ou indivíduo técnico, dotado de uma estrutura diferente, podendo haver, ainda, casos mistos de adaptação que combinem ambas as possibilidades.

Essa característica hipertélica, que pode ser compreendida como uma potencialidade inerente a cada ente, mostra que todo objeto técnico é aberto em menor ou maior grau para se relacionar de distintas formas com outros objetos técnicos, bem como com seus usuários, estando diretamente relacionada a seu progresso e evolução. Para Simondon (MEOT, 2007, p. 33), “o automatismo e sua utilização sob a forma de organização industrial denominada automação possui uma significação econômica ou social, mais do que uma significação técnica”. Não é pelos automatismos técnicos que os seres tecnológicos podem aperfeiçoar-se. De fato, toda forma de automatismo sacrifica possibilidades de funcionamento, isto é, limita o desempenho de um ser técnico e, para aumentar o grau de tecnicidade de uma máquina, ou seja, para aperfeiçoá-la, é necessário preservar sua capacidade de ser sensível a uma informação exterior em função de sua margem de indeterminação.

O segundo tipo de adaptação é aquele que favorece a reconversão industrial, e maquinários e indústrias podem ser concebidos para possuir um grau maior de abertura a fim de facilitar o desmembramento de seus objetos técnicos em elementos menores, a fim de possibilitar seu rearranjo em indivíduos e conjuntos técnicos diferentes, capazes de realizar novas tarefas. É através dessa abertura e indeterminação, e não pelos automatismos pré-estabelecidos, que os objetos técnicos podem trocar novas informações entre si e serem agrupados em conjuntos coerentes coordenados pelos seres humanos, que são os intérpretes de seus esquemas fundamentais e que regulam essa margem de indeterminação possibilitando o melhor intercâmbio de informação (MEOT, 2007, p. 34).

Simondon explica ainda que a relevância dessa sensibilidade das máquinas à informação externa reside em que é através dela, e não por um aumento do automatismo, que se pode consumar um conjunto técnico, pois uma máquina puramente automática, completamente fechada sobre si mesma em um funcionamento pré-determinado, somente pode oferecer resultados sumários. Por outro lado, a máquina que está dotada de uma alta tecnicidade é uma máquina aberta e um conjunto de máquinas abertas supõe o homem como organizador permanente, como intérprete vivo de máquinas, umas em relação a outras. Para exemplificar essa organização, Simondon se vale de uma metáfora esclarecedora: em sua relação com os objetos técnicos, o homem não é um sentinela ou um escravocrata; ele é um maestro de seres que possuem capacidades que devem igualmente ser conhecidas por aquele que os conduz e que, por sua vez, é conduzido por eles numa inter-relação dinâmica e constante:

Longe de ser vigilante de uma tropa de escravos, o homem é o organizador permanente de uma sociedade de objetos técnicos que têm necessidade dele como os músicos têm necessidade do maestro de orquestra. O maestro de orquestra somente pode conduzir os músicos pelo fato de que toca como eles, tão intensamente como todos eles, o fragmento executado; os modera ou os acelera, mas se vê igualmente moderado ou acelerado como eles; de fato, através dele, o grupo de músicos modera e acelera a cada integrante e o diretor é, para cada um deles, a forma em movimento e atual do grupo enquanto existe; é um intérprete mútuo de todos em relação com todos. Do mesmo modo, o homem tem como função ser o coordenador e inventor permanente das máquinas que estão ao redor dele. Está entre as máquinas que operam com ele. (MEOT, 2007, p. 33-34)

Simondon ressalta que as estruturas técnicas que o homem inventa e concretiza na forma de máquinas e objetos técnicos “têm necessidade de ser sustentadas no transcurso de seu funcionamento e a maior perfeição coincide com a maior abertura, com a maior liberdade de funcionamento” (ibid., p. 34). Nos fenômenos hipertélicos, o objeto técnico se desadapta em relação a condições que antecedem o processo de readaptação. Para que a evolução dos indivíduos técnicos se transforme em progresso, estes precisam de um grau de liberdade e não ser sobredeterminados no sentido de uma hipertelia inevitável; sua evolução deve ser construtiva no sentido de que o próprio indivíduo técnico em seu esquema fundamental, dotado de potencialidades que permanecem inexploradas, autocondiciona suas modificações para o aumento de sua própria tecnicidade. Contudo, pela sua inteligência o homem é capaz de exercer uma função inventiva de antecipação rumo à concretização de novas formas técnicas, função essa que, para Simondon, não está nem na natureza nem nos próprios objetos técnicos.

Artistas como a estadunidense Ann Perry Smith trabalham a potencialidade das formas dos objetos técnicos em nível estético, evidenciando suas facetas expressivas, trazendo para o primeiro plano sua multifuncionalidade, sua capacidade de recombinação e readaptação a usos diferentes daqueles incialmente propostos por seus idealizadores e fabricantes. Como observa Santaella (2017, p. 91), o artista é um agente transformador que, embora não possa mudar o mundo, operando em sua realidade concreta, é capaz de operar na educação dos sentidos, tornando-os mais humanos. “Hoje os artistas estão empenhados em produzir obras que coloquem o espectador em uma oposição na qual será transformada sua sensibilidade […] O destino da arte é romper as fronteiras porque as fronteiras são limites” (ibid., p. 91-92). Um exemplo desse exercício poético – e poiético – é a escultura de uma coruja criada por Smith em material eletrônico e peças de máquinas obsoletas, considerada um “símbolo de sabedoria”, segundo Brandt (2008).

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Owl”, 18 cm, Ann P. Smith, EUA, 2008.

Por meio da reflexão filosófica, da expressão artística e da conscientização científica, o desenvolvimento dessa sabedoria em relação à realidade técnica forjada pelo homem é urgente em um mundo que está sofrendo as consequências de seu uso abusivo como nunca antes. Embora o termo pós-pandemia tenha se tornado corrente na mídia como forma de aludir às necessárias mudanças sociais, econômicas e políticas para minimizar os efeitos da atual pandemia, bem como para evitar um novo ciclo do vírus no globo, pode-se pensar que, apesar de esperançoso, o termo venha imbuído de uma certa precocidade. Segundo Marques (2020), “a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 precipitou uma ruptura ainda maior no funcionamento das sociedades contemporâneas”, que vêm sentindo os efeitos convergentes de três crises estruturais na sua relação com o sistema Terra: a emergência climática, a aniquilação em curso da biodiversidade e o adoecimento coletivo dos organismos, intoxicados pela indústria química. Marques (ibid.) observa que a pandemia possui um caráter antropogênico, pois as recentes pandemias são fruto da disfuncionalidade e destrutividade da própria atividade humana levada à cabo em um paradigma econômico de crescimento ilimitado, uma vez que a crise climática e o declínio da biodiversidade, entre outros fatores, favorecem o seu aparecimento e propagação, tornando-as cada vez mais frequentes (SETTELE et al., 2020), evidenciando que o planeta ainda não se encontra em um estágio posterior à pandemia, estado almejável mas que, para ser alcançado, demanda mudanças profundas a serem realizadas em curto, médio e longo prazo para transformar o cenário biossocial que é sua causa. Nesse sentido, por mais doloroso que seja, é possível designar o estágio atual do planeta como um mundo pandêmico, onde vêm ocorrendo epidemias com cada vez maior frequência e intensidade – recordemos o surto de Ebola, que teve seu pico em 2014, as gripes suína em 2009 e aviária em 2006, e o surto do mal da “vaca louca” no fim dos anos 1990, do qual foi detectado um caso isolado no Brasil no ano passado (MÁXIMO, 2019). Como observa Georgieva (2020), estamos em território desconhecido, mas que demanda atores mais responsáveis em um capitalismo mais responsável, sendo uma oportunidade de acelerar a transição para um crescimento econômico sustentável.

Como fruto do momento emergencial, diversos projetos de reconversão industrial vêm sendo debatidos e propostos por parte de empresas, trabalhadores e universidades (NUZZI, 2020; MANTOAN, 2020). Contudo, diante do colapso socioambiental em curso, tal iniciativa precisa ser pensada para além de seus benefícios econômicos ou apenas como meio de enfrentar uma crise profunda. A reconversão industrial significa construir novas possibilidades no presente e futuro, reaproveitando infraestruturas disponíveis e planejando as novas de maneira diferente, buscando, não só a maior abertura e facilidade de adequação dos meios técnicos de produção, mas igualmente a promoção da sustentabilidade e do crescimento verde, fomentando uma nova cultura técnica que modifique hábitos, reorganize setores da sociedade, reformule lideranças e mostre, entre as engrenagens do sistema, o caminho para o planeta transformado e a nova ordem mundial que precisam emergir desse cenário.

Referências

BRANDT, Jan. Objekt der Begierde. Architectural Digest. Publicado em 21/05/2008. Disponível em: <http://burrowburrow.com/press/AD.jpg&gt; Acesso 01/06/2020.

BRASIL ATUAL, Rede. Reconversão reforça combate à pandemia e pode ajudar setor industrial. Redação. Rede Brasil Atual. Publicado em 17/05/2020. Disponível em: <https://www.redebrasilatual.com.br/economia/2020/05/reconversao-reforca-combate-a-pandemia-e-pode-ajudar-setor-industrial/>. Acesso 01/06/2020.

GEORGIEVA, Kristalina. International Monetary Fund Managing Director on Coronavirus Response and Global Economy. Interviewed by Ryan Heath. Politico.com. Publicado em 15/05/2020. Disponível em: https://www.c-span.org/video/?472161-1/international-monetary-fund-managing-director-coronavirus-response-global-economy&gt;. Acesso 01/06/2020.

JUNGK, Isabel. Contribuições de Simondon para o realismo contemporâneo: Ontogênese e evolução dos objetos técnicos. Revista Eco-Pós, v. 21, p. 248-267, 2018. Disponível em:<https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/18352>

JUNGK, Isabel. Por uma Ontologia Plana: Harman, Simondon, Peirce. Tese de doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital – PUC/SP, 2017.

JUNGK, Isabel. Simondon: uma perspectiva ontoepistemológica para a contemporaneidade. Transobjeto Blog. Publicado em 15/04/2017. Disponível em: https://transobjeto.wordpress.com/2017/04/15/simondon-uma-perspectiva/

2 respostas em “Cultura e hipertelia do objeto técnico: Reconversão industrial em um mundo pandêmico e pós-pandêmico

  1. Pingback: Invenção, tecnologia e o papel do tecnólogo na cultura técnica segundo Simondon | TransObjetO

  2. Fiquei bastante interessado em ler mais sobre Gilbert Simondon e o conceito de hipertelia.
    No texto é citada uma fonte sobre ele (MEOT, 2007) que não encontrei nas referências bibliográficas ao final. Poderia me informar qual é essa fonte?
    Agradeço desde já!

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