Invenção, tecnologia e o papel do tecnólogo na cultura técnica segundo Simondon

Por Isabel Jungk

Gilbert Simondon, 1924-1989

[Abstract] “Invention takes place through a rearrangement of structures that does not occur by chance. The resulting technical object is an intermediary between the world and human beings that appears as the solution to a problem, constituting not only a simple transfer of physical forces, but a material fixation or crystallization of an effective gesture or procedure. In this way, every technical object is defined by a type of internal coherence in which there is a reciprocity of causal actions and of information exchange, with invention being an ontogenetic potency since it brings about an unprecedented independent being. Philosophical thought must integrate technical reality into culture, founding a technology understood as the study of technique that must perform a regulatory function between man and the world of technical objects. In this context, the technologist makes it possible to explain the true regulatory character of these human-technical relations, reintroducing into culture the awareness of the nature of machines, of their mutual relations and their relations with human beings, and of the values ​​implied in these relations so that this awareness functions as an adequate mediator of social relations.

Simondon é certamente o pensador da invenção e não da inovação, a palavra de ordem da tecnocracia contemporânea. Para Simondon, “a invenção é uma das grandes formas da função do novo no homem, ao lado da descoberta, motor das ciências e da criatividade” (apud CHATEAU, 2008, p. 65). A invenção, que pode ser estudada em diferentes domínios, especificamente técnicos ou não, como a filosofia, pode ser considerada essencialmente “um rearranjo de estruturas e de funções por encadeamento no tempo” (ibid.). Nesse sentido, há que se distinguir quando se trata verdadeiramente de invenção e quando se trata de uma simples expressão de criatividade. Segundo a perspectiva simondoniana, na invenção, esse remanejamento de estruturas não se faz ao acaso, mas como a resolução de um problema; por isso, as realizações técnicas, que sempre buscam resolver um problema, aparecem por invenção.

Em entrevista concedida ao Ministério de Educação do Quebec, Une entretien sur la Mecánologie, Simondon (1968, parte 1) explica a perspectiva ontológica pela qual um objeto técnico deve ser considerado um indivíduo constituído. Ele observa que o objeto técnico, que se constitui inicialmente como uma unidade sólida, é um intermediário entre o mundo e o homem e até um intermediário entre outros objetos técnicos. Assim, a primeira fase de seu desenvolvimento é o estágio da constituição de sua unidade. Embora um instrumento seja essencialmente uma relação de mediação, um intermediário entre o corpo do operador e as coisas sobre as quais age, um bom instrumento dever ser indivisível, isto é, deve ser bem constituído em primeiro lugar. “Uma individualidade aparece, mas uma individualidade internamente consistente”, afirma Simondon (ibid.).

À máquina, prossegue o filósofo, o mesmo princípio se aplica, pois, em quase todos os casos o ponto de partida é a resolução de um problema por meio da emergência de um novo intermediário. Esse intermediário dever ser, primeiramente, viável, estável, confiável da mesma forma que um ser vivo é viável, o que significa que sua configuração não seja autodestrutiva, no sentido de que seu funcionamento seja seguro para ele próprio, não o leve a se autodestruir, e que ele seja o local no qual todas as mudanças ocorram de maneira estável. Dito de outro modo, a unidade de funcionamento, de estabilidade, de integridade é a condição para a existência de qualquer objeto técnico ou máquina. Essa é a primeira fase, quando um objeto técnico se torna um objeto singular, depois aparecem outras.

O objeto técnico é, por um lado, um mediador entre o organismo e o meio, por outro lado uma realidade interiormente organizada e coerente; como mediador, ele deve se adaptar aos termos extremos que ele conecta, e é um dos aspectos de seu progresso melhorar seu acoplamento às realidades entre as quais ele faz uma ponte; mas esse aumento de complexidade e de distância entre os termos extremos deve ser compensado por um extra de organização e coerência entre as diferentes partes do objeto técnico; o progresso técnico se faz por oscilações entre o progresso da mediação e aquele da autocorrelação. (SIMONDON, 2005, p. 101-102)

O indivíduo técnico é um objeto técnico no qual o movimento de concretização conduziu a sua individualização. Dizer, que um objeto técnico é um indivíduo, significa dizer que ele não é, na mediação entre o usuário e o meio onde ele é aplicado, uma simples transferência de forças físicas, mas que é a fixação material, a cristalização de um gesto ou de um procedimento eficaz; em suma, que ele existe em certa medida por si mesmo, que têm propriedades próprias e um meio próprio que determina o lugar e os limites de seu funcionamento, meio que é necessário inventar juntamente com ele, ao mesmo tempo, sob pena de seu funcionamento ser impossível ou autodestrutível. Chateau (2008, p. 81) observa que “a noção de indivíduo técnico é uma confirmação brilhante e mesmo audaciosa do ponto de vista ontológico adotado” por Simondon.

Dessa forma, todo objeto técnico se define por um tipo de coerência interna que vem das propriedades conferidas aos componentes em ação quando o problema se supõe resolvido. Isso significa que há uma reciprocidade de ações causais e de intercâmbio de informação entre o todo e as partes em funcionamentoque constituem o objeto técnico como realidade que possui um modo de existência próprio, conforme Simondon (ibid.).  Assim, a invenção é o aspecto mental, psicológico desse modo próprio de existência e a presença do homem nas máquinas é, portanto, uma invenção perpetuada. O que reside nas máquinas é a realidade humana, o gesto humano fixado e cristalizado em estruturas que funcionam (MEOT, 2007, p. 34).

Para dar um exemplo da complexidade da verdadeira invenção técnica em relação a um simples aperfeiçoamento de superfície, devemos observar que nela não é somente o objeto que é inventado, mas também, e ao mesmo tempo, seu meio associado, sem o qual ele não seria viável, não funcionaria ou seria autodestrutível. Simondon (MEOT, 2007, p. 58) observa que o que caracteriza o progresso no desenvolvimento do objeto técnico é essencialmente o descobrimento de sinergias funcionais. A invenção é, por esse motivo, uma potência ontogenética já que ela faz advir, do ser, um ser verdadeiramente inédito que não teria chance de se dar por acaso, por variação espontânea das formas existentes, por tentativas e erros sobre as formas já existentes, ou por combinação entre elas, porque ele não poderia advir sem ser primeiro pensado e calculado, precisamente, como a solução de um problema (CHATEAU, 2008, p. 66).

Embora a análise simondoniana do devir técnico possa parecer antagônica ao classificar a invenção como potência genética e, concomitantemente, reconhecer que a maioria das invenções são feitas preliminarmente com vistas a uma determinada utilização, essa aparente tensão, como observa Barthélémy (2012, p. 215), pode ser compreendida quando Simondon introduz a ideia de origem absoluta de uma linhagem técnica. Ele especifica que o início de uma linhagem técnica de objetos está marcada pelo ato sintético da invenção constitutiva de uma essência técnica (MEOT, 2007, p. 64). A essência técnica pode ser reconhecida pelo fato de que ela tanto permanece estável ao longo de uma linha evolucionária como também é produtora de estruturas e funções através do desenvolvimento interno e da saturação progressiva (cf. BARTHÉLÉMY, ibid.). As técnicas, tomadas globalmente, evoluem. Contudo, essa evolução possui em certos domínios um valor genético, ao passo que em outros ela é uma resultante do progresso alcançado nos domínios vizinhos ou conexos (SIMONDON, 2005, p. 105). Assim, existem linhagens de objetos técnicos que realizam o devir que é potencialidade contida em uma essência.

Pode-se distinguir, portanto, entre a invenção primeira de uma essência técnica, como a origem absoluta de uma linhagem, as otimizações menores e contínuas que tomam lugar dentro dessa essência técnica à medida que ela se realiza progressivamente, e a invenção descontínua, tornada necessária pela “saturação do sistema” que resulta de uma série contínua de otimizações menores. A invenção descontínua é aquela na qual o objeto técnico realmente “concretiza” a si mesmo como realidade de um progresso (ibid., p. 216). O objeto inventado, então, pode ir além das intenções iniciais de utilização que demandaram sua invenção. “Seria parcialmente falso dizer que a invenção é feita para obter uma meta, realizar um efeito que era conhecido antecipadamente”, porque “a verdadeira invenção contém um salto, um poder que amplifica e ultrapassa a simples finalidade e a busca limitada por uma adaptação” como resolução de um problema, ressalta Simondon (apud BARTHÉLÉMY, ibid.).

O problema para o qual se busca solução é aquilo que religa a invenção técnica à história das técnicas e das ciências, ao mesmo tempo em que está ligado à atualidade da demanda e dos ditames sociais e econômicos, na medida em que é a partir de seu estado que o problema é colocado e a partir do qual a solução será encontrada, segundo Chateau (2008, p. 66). Ao mesmo tempo, o problema é também aquilo que estabelece uma ruptura entre todas as condições que precedem o advento do objeto por meio da invenção. Assim, a gênese e a invenção são pontos de vista solidários, pois descrever o objeto técnico como “aquilo no qual há uma gênese por concretização” (ibid.) é examiná-lo do ponto de vista de sua invenção e vice-versa.

Esse é o motivo fundamental pelo qual, na obra de Simondon, o domínio das técnicas pode ser compreendido tanto da perspectiva psicológica quanto tecnológica, bem como a partir da história das técnicas. A psicologia da invenção técnica não é reduzida a algumas generalidades sobre as operações e atividades intelectuais que aí operam; ela consiste, sobretudo em seguir a gênese de cada invenção em sua singularidade como a colocação e a resolução de um problema determinado e singular. Assim, é importante ressaltar que, embora uma linhagem técnica tenha uma origem primeira, o surgimento da essência técnica como ato singular de concretização, isto é, como “ato sintético de invenção constitutiva” (MEOT, 2007, p. 64), faz parte de um processo evolutivo.

Por isso, Simondon diz que o ser técnico somente será objeto de um conhecimento adequado pela apreensão de sua individuação (ou concretização) no decurso temporal de sua evolução. “Seguir a gênese” é a fórmula mesma da ontogênese (ibid., p. 67) entendida como processo e operação de individuação, e como conhecimento desse processo, isto é, como apreensão do ser segundo sua individuação que constitui sua tecnicidade, constituída pelo homem e o mundo, e que não pode ser apreendida a não ser dentro dessa moldura interpretativa genética:

A tecnicidade é uma das duas fases fundamentais do modo de existência do conjunto constituído pelo homem e o mundo. A tecnicidade não pode se apartar da análise das realidades que possuem um modo de existência dos objetos. Ela se caracteriza como uma relação do homem ao mundo, um modo de ser no mundo do homem que nós não podemos apreender a não ser no quadro de uma interpretação genética generalizada das relações do homem com o mundo. (CHATEAU, 2008, p. 103)

Embora o sentido comum da palavra tecnologia (tecno-logia) se refere à técnica moderna na medida em que ela seria a aplicação do logos da ciência, Simondon reinterpreta essa palavra como o estudo, o “logos” da técnica (BARTHÉLÉMY, 2012, p. 229). Lembrando que Simondon (2005, p. 331-332) adota a classificação que reparte em três grupos os produtos da técnica – as máquinas passivas, como as construções, nas quais predominam os problemas da composição de forças e resistência de materiais, as máquinas ativas ou motoras de todos os tipos, e as máquinas reflexas ou de informação, nas quais a realidade prevalente é a informação, com sua fidelidade e linearidade de funcionamento–, a mecanologia seria, então, esse estudo de uma tecnologia em nível geral (MEOT, 2007, p. 69). Essa é uma das principais teses de Simondon: “que o pensamento filosófico deve realizar a integração da realidade técnica na cultura universal, fundando uma tecnologia”, ou seja, que o estudo da técnica deve realizar uma função reguladora entre o homem e o mundo dos objetos técnicos.

O tecnólogo, também chamado mecanólogo (MEOT, 2007, p. 35), é o ser humano que torna possível dar de volta à cultura atual o verdadeiro caráter regulador dessas relações homem-técnica que ela perdeu. Através do tecnólogo, e não do psicólogo ou sociólogo, é que se pode reintroduzir na cultura “a consciência da natureza das máquinas, de suas relações mútuas e suas relações com o ser humano, e dos valores implicados nessas relações” (ibid.) para que essa consciência funcione como um mediador adequado dessas relações sociais, eliminando as distorções fundamentais que a cultura atual ocasiona ao estar permeada, ainda, de esquemas de dinamismo técnico antiquados, fundados sobre técnicas artesanais e agrícolas de séculos precedentes.

Referências

BARTHÉLÉMY, Jean-Hugues. Fifty key terms in the works of Gilbert Simondon. Arne De Boever, translator. Gilbert Simondon: Being and Technology. Boever et al., Edinburgh University Press, 2012.

CHATEAU, Jean-Ives. Le vocabulaire de Simondon. Paris: Editions Ellipses, 2008.

JUNGK, Isabel. Cultura e hipertelia do objeto técnico: Reconversão industrial em um mundo pandêmico e pós-pandêmico. Transobjeto Blog. Disponível em (acesso 11/12/2021): https://transobjeto.wordpress.com/2020/06/19/cultura-e-hipertelia-do-objeto-tecnico-reconversao-industrial-em-um-mundo-pandemico-e-pos-pandemico/

JUNGK, Isabel. Por uma Ontologia Plana: Harman, Simondon, Peirce. Tese de Doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital – PUC/SP, 2017.

JUNGK, Isabel. Simondon: uma perspectiva ontoepistemológica para a contemporaneidade. 2017. Transobjeto Blog. Disponível em (acesso 11/12/2021): https://transobjeto.wordpress.com/2017/04/15/simondon-uma-perspectiva/

SIMONDON, Gilbert. El modo de existencia de los objetos técnicos. Margarita Martinez e Pablo Rodríguez (trads.). Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007. Citado como MEOT, seguido do ano da edição e número da página.

SIMONDON, Gilbert. L’invention dans les techniques: Cours et conférences. Edition établie et présentée par Jean-Ives Chateau. Editions du Seuil, 2005.

SIMONDON, Gilbert. Une entretien sur la Mecánologie. Avec Jean Le Moyne. Le Ministére de L’Éducation du Québec,  1968. Entrevista em três partes disponível em (acesso 11/12/2021) Parte 1: https://www.youtube.com/watch?v=38KEnSBj1rI

Deixe um comentário