O Cântico dos Quânticos

por Marcelo Moreira Santos

[Abstract]: “The aim of this text is to explore the concept of consciousness from notions arising from Systems Theories, Peirce’s Semiotics and Lagarcha-Martínez’s Quantum Humanism. The aim is to probe the possibility of expanding this concept from the emerging synergistic complementarities and observe that consciousness is not something that belongs only to homo sapiens, it spreads through the ecosystem homeostasis existing in the cosmos.

Talvez você já tenha tido aquela experiência de olhar o firmamento e fazer certas perguntas que a humanidade se faz ao longo dos séculos diante de um cosmos prenhe de estrelas que dançam sobre as nossas cabeças como se tudo fosse tão magnificamente dosado que parece que o mistério e o milagre sejam as únicas respostas palpáveis a acalentar a nossa consciência.

Podemos cogitar que talvez os mistérios tenham o seu charme por não nos darem a segurança intelectiva que desejamos e é por isso que a vida não perde o seu brilho da manhã. O seu lugar de poesia. Por outro lado, ter a certeza dos milagres que nos cercam não deixa de nos fazer reconhecer o quão singular é a vida. O quão quântico é tudo que nos perfaz.

De fato, certos firmamentos nos fazem perceber o quão infinitesimal são as nossas reflexões a respeito do cosmos que nos cerca. Tateamos certas noções tentando pescar em nossas redes cognitivas alguns rincões de certeza, mas sabemos, que por mais que ousemos, algo sempre escorre pelos nossos dedos: o signo não consegue conter em suas cercanias o fogo-fátuo da vida. Alguma partícula sempre escapa aos nossos medidores interpretativos e, talvez, lidarmos com estas contingências nos liberte e nos aproxime de uma consciência, dita, quântica.

Edgar Morin vai dizer que a consciência é uma emergência fruto não de uma essência, mas de múltiplos fatores não totalmente dimensionados pela logicidade interna coesa e coerente aristotélica clássica. Creio que tal emergência se aproxima mais das estruturas dissipativas encontradas no caos determinista em sistemas longe do equilíbrio do que num terreno fixo e estável da razoabilidade. Aliás, para toda homeostase – equilíbrio e estabilidade – paga-se com muita entropia no processo, como explica Morin.    

Sobre as emergências, segundo ainda Morin, estas estão no campo das singularidades, ou, acrescento aqui, do primeiro, como argumenta Charles Sanders Peirce. Não estamos distantes de Jacques Lacan, nesse quesito, ao falar do ser humano como singularidade, mas deixemos Lacan de lado, por enquanto.

O primeiro é aquilo que não se repete, é único, livre, este é tal como é. A consciência é primeiramente primeva, suis generis, fruto de tudo aquilo que nos inundou ao longo do tempo e tempo aqui está embutido em seu processo os espaços-de-contexto (Jorge Albuquerque Vieira) – eventos e fenômenos que perfizeram nossos caminhos – e os atratores legaliformes (Jorge Vieira) – imprintings culturais, leis, dogmas, conceitos, hábitos etc. – que moldaram/gravitaram nossos pensamentos, escolhas e comportamentos, transformando-os e nos transformando, ao longo da vida. Estamos nesse grande universo de múltiplas variáveis com vários atratores nos atraindo, nos repelindo, concorrendo, cooperando, se complementando, entre si, portanto, longe do equilíbrio.  

A tomada de consciência (em Carl Jung) ou mudança de hábito (em Peirce) seria fruto de um rearranjo das integrações perceptivas-interpretativas-sinérgicas que estamos envolvidos, seria um rearranjo dos grafos existências ou na maneira como mediamos-computamos as inter-relações internas e externas dos signos que nos rodeiam, não contidas em nós, mas nos atravessando num continuum, ou semiose.

Mediamos por meio dos grafos, pois como no cinema, ora precisamos de um close up para nos aproximar do assunto, ora precisamos de um plano aberto para o observarmos sobre um ângulo mais amplo: suas conexões, projeções e processos. Assim, a cada ângulo, posição, movimentos de câmera (ponto-de-vista) ou dos grafos – entenda-os como um processo tridimensional – observando suas integrações e suas inter-relações sistêmicas, mais informações podemos gerar ou apreciar sobre o mundo ao nosso entorno.

Este movimento de aproximação e distanciamento – enquadramentos – alicerçados pelos grafos para dar conta da realidade e seu fluxo intermitente de signos – sempre inter-relacionados com outros – está ao passo do sinequismo peirceano na sua atualização das interpretações na longa corrida rumo aquilo que possa nos servir como base estável – não nos esqueçamos da constante entropia que nos aflige neste processo, o falibilismo não nos deixa mentir – para conquistarmos aquilo que chamamos de conhecimento, ou memória sistêmica (Jorge Vieira), ou área de informação (Peirce).  

O grafo tem a natureza de um diagrama, os diagramas são hipoícones e o pensamento dedutivo, como explica Peirce, tem seu fundamento nos diagramas. Isto é, mediamos mediante a um conjunto de complementaridades multifatoriais em um continuum que foge de uma linearidade clássica newtoniana ou de uma dicotomia cartesiana simplificada de mente vs. matéria, ela é uma una-multiplex (Morin). 

A consciência seria um ecossistema de natureza dupla, isto é, que pode se comportar como uma onda em determinados momentos e como partículas em outros, que pode ser linear no aleatório, e aleatório no linear. Ela seria suis generis porque assim como todo ecossistema ela é singular, eco-dependente. E como todo ecossistema, ela encontra sua homeostase operando múltiplas concessões, repressões, associações, cooperações, mutualismos, simbioses, enfim, complementaridades diversas. Se existe algo que molda e impulsiona a nossa consciência são as complementaridades! Peirce dirá que o pensamento não está em nós, somos nós que estamos no pensamento, e posso reutilizar esta frase da seguinte maneira: esta consciência-complementaridade não está em nós, somos nós que estamos nela.

De fato, nos enveredamos pelos reinos das interações relacionais em diferentes escalas e camadas de significado. No curso da vida, se assim desejarmos, vamos expandindo ou dilatando o nosso Umwelt (ou bolha interpretativa) a cada nova surpresa, conflito, reajuste que a realidade nos impõe e/ou aflige. E vamos nos utilizar das tecnologias para abranger e entrelaçar outras tantas complementaridades quanto possível. O que nos motiva a tal processo? Seria a sobrevivência? Ou seria a busca pela nossa autonomia como sistemas vivos? Peirce vai dizer que toda busca real nasce de uma dúvida real, e posso dizer aqui que toda dúvida real nasce de uma abertura do sistema. Qual sistema? A nossa complementaridade-consciência!

Todos os processos de ajustes mútuos, acoplamentos (Prigogine), integrações (Jorge Vieira) e complementaridades se dão pelo viés de uma dissolução dos limites entre o Eu e o não-Eu. A alteridade cede espaço ao togetherness, a uma união entre complementaridades. Temos essas experiências diante das obras de arte e/ou diante de eventos da natureza que são tal como são e, às vezes, não sabemos como acontecem. Há aí uma experiência de deslumbramento e carecemos de palavras para explicá-la. Assim, a única alternativa é a contemplação. Lembra do firmamento no começo do nosso texto? Pois é, esta contemplação se constitui no milagre das fusões entre complementaridades e tal experiência brota, com a riqueza que lhe é inerente, para nos fazer despertar para às idiossincrasias que nos cercam. É um chamado para as re-significações, para os realinhamentos semânticos, para a poesia.    

As as obras de arte são um grande chamariz para essa dissolução e expansão de nosso Umwelt-bolha-complementaridade rumo a uma união com outras complementaridades. Quando leio Dublinenses de James Joyce, ou vejo Guernica de Pablo Picasso, eu tenho acesso aquela consciência-complementaridade daquele momento – frame – do autor e do pintor, respectivamente. Sou inundado por estes frames de consciência, e estes afetam outros conjuntos de signos dentro mim atravessando para outros destinos, ad infinitum. Como dirá Peirce citando Emerson: Do teu olho, sou o olhar! Quando assisto uma adaptação de teatro da obra de Ariano Suassuna, A Pedra do Reino, o que assisto é um enxame de complementaridades-consciências, advindas em conjunto, começando pelo autor da obra, passando pelo diretor e suas decisões criativas ao adaptar a obra original para o teatro, e acrescentando aí todos outros agentes semióticos – complementaridades-consciências – envolvidas na encenação da peça. Eu ‘vejo’ o mundo pelo ‘olhar’ destas outras complementaridades-consciência, partilho com elas aquele espaço-tempo, em conjunto.

A estética peirceana pavimenta-nos este caminho de dissolução/união com outras complementaridades-consciências nos instigando a redimensionar e atualizar as nossas próprias singularidades/olhares/pensamentos enredando-as com tantas outras, ad infinitum. Modificando nossa ética e lógica, nossos hábitos e epistemologias neste processo. Daí a importância que Peirce dá ao olhar do poeta. Este olhar, no fundo, é um convite à abertura do nosso sistema a tantas outras singularidades ecossistêmicas que nos circundam, nas artes e no cosmos, sem injetarmos no objeto nossas próprias predileções egoístas, se isso for possível. Entretanto, muitas vezes, fechamos nossos sistemas, e não permitimos mais as trocas e interações, e ainda colocamos nossos próprios sistemas de ideias – iluminismo, positivismo, modernismo, por exemplo – como as mais adequadas, cristalizando nossos hábitos, em leis e em dogmas. Neste contexto, o sistema morre em entropia, isto é, em si mesmo.

Como Morin esclarece, há de se ter esse movimento de abertura e fechamento dos sistemas ao passo das múltiplas evoluções em que estamos inseridos. Há de se ter um tempo para o recolhimento das informações transformando-as em abduções, deduções e induções, enfim, em aprendizagens, desenvolvimentos e evoluções sistêmicas, compartilhando-as com outras consciências-complementaridades. Salta-nos aos olhos a importância do papel da metodêutica peirceana neste processo co-evolutivo ao compasso dos movimentos temporais-semióticos e seus entrelaçamentos em complementaridades diversas no sinequismo dos sistemas vivos e autopoéticos.

Peirce vai dizer em Evolutionary Love sobre esse movimento das ideias em ciclos periódicos, a cada 33 anos, cita ele, onde há uma mudança significativa no ambiente das ideias (Noológico para Morin, Paradigmático para Kuhn) e mesmo em contextos tão distintos em que pesquisadores e artistas nem tenham entrado em contato, surge ali uma emergência-singularidade que estimula mudanças significativas décadas depois em todos os sistemas de ideias integrados. Jung chama essa peculiaridade suis generis de conexão sem contato direto de sincronicidade, e creio que ela seja fruto de um pragmatismo complementar cujo ‘terreno’ se tornou fértil para sua emergência e sinergia. 

Poderíamos pensar numa consciência-complementaridade que fosse para além dos indivíduos atomizados e se espraiasse num continuum intelectivo sem centro de comando perceptível, mas apta a promover a variabilidade das mudanças interpretativas? 

Ao assistir um documentário sobre agricultura sintrópica (Life in Syntropy) de Ernst Göstch percebi que a sapiência não está de todo no homo sapiens, mas nas complementaridades e em seus processos eco-comunicativos (Morin). Göstch promove a sintropia, isto é, por meio de processos entrópicos, ele, como agricultor, estimula a cultura das complementaridades comunicativas (eco-semiose) no próprio sistema fazendo com que as diferentes espécies e indivíduos encontrem caminhos partilhados, copulativos (Peirce) e co-evolutivos: indo do solo às copas das árvores.

Assim, o agro-ecossistema se torna auto-produtivo devido a solidariedade entre todos os envolvidos: desde as micorrizas (fungos e bactérias), passando pelas minhocas, pelas abelhas polinizadoras, chegando aos consórcios entre espécies vegetais, modificando inclusive o microclima da região acarretando volumes maiores de chuvas, na qualidade do ar e, principalmente, na qualidade dos alimentos ali produzidos para todos nele integrados. Pois, neste sistema não há uso de defensivos agrícolas ou agentes bioquímicos no processo, a própria natureza reprime os ataques diversos à sua produção, ela “encontra” um equilíbrio permeado pela eco-semiose. Assim, as espécies se ajudam mutuamente, trocam informações por suas raízes (micorrizas), por hormônios expelidos aos ventos quando atacadas (Wholleber) etc. É uma solidariedade permeada por muitas concorrências, antagonismos, associações, repressões e complementaridades diversas e que encontra a sua própria homeostase. Göstch vai dizer que cada agro-ecossistema tem sua história, sua singularidade, devido à região, devido aos consórcios de espécies etc., no fundo, cada agro-ecossistema é, por si só, uma emergência.     

Esta emergência teria consciência de si? Pergunta difícil de se responder se tivermos como ideia uma consciência clássica, aquela que se auto-reflete. Mas, se olharmos para uma consciência que parece imbuída pelo fim último de gerar e regenerar diversas complementaridades semióticas e sistêmicas para alçar as homeostases conquistando autonomia criativa-permanente (autopoièsis) e sobrevivência, então poderíamos chegar, não a uma consciência clássica, mas a um pragmatismo sinérgico das complementaridades.

Como Morin observa em Método 1 e 2, os organismos vivos encontraram nas interações formas de se auto-organizarem por meio de trocas que se transformaram em relações e inter-relações, com funcionalidades distintas, sejam especializadas e/ou poli-funcionais, gerando integrações permeadas por interseções, ajustes e adaptações numa cadeia ecológica de ações plurais, criando conjuntos ou sintaxes que permitiram desenvolvimento de diversos ambientes férteis – Gestalt – para o crescimento de sistemas, ecossistemas, micro-ecossistemas e macro-ecossistemas em diferentes escalas. Peirce vai nos alertar: everywhere the main fact is growth and increasing complexity

A vida em si eco-dependente de uma pluralidade de sistemas que se autorregulam mutuamente por meio das homeostases. Tudo que se degenera, se torna alimento para gerar e/ou regenerar outros sistemas, ad infinitum. O prefixo “re” é uma máxima que permeia o cosmos vivo: reutilização, regeneração, ressignificação, re-atualização etc.  É a recursividade retroativa intermitente ou o sinequismo peirciano em estado contínuo de fluxo. Neste contexto, as homeostases – turbilhões de fluxos semióticos e sistêmicos transformados em circuitos autorregulados e criativos – poderiam ser chamados de consciência da natureza. Peirce, ao observar a ação do pragmatismo no cosmos, coloca-o como um princípio condutor intelectivo, aparando o caminho para as aprendizagens, mudanças de hábito, leis, por certo, as auto-regulações dos sistemas vivos. A sapiência não está no homo sapiens, somos nós que estamos nela, somos frutos dela. 

Sabiamente, o cosmos ‘descobriu’ que para sobreviver haveria de compartilhar saberes e ensinar aos seus filhos a como ter autonomia operando pelo viés das múltiplas complementaridades integrativas/copulativas auto-reguladoras, porque no fundo, o cosmos mesmo se beneficiaria do processo, se atualizando em novas possibilidades de autonomia e permanência, em continuum.

Na tentativa de vislumbrar esta sapiência cósmica tácita (Jorge Vieira) o sapiens, inicialmente enxertou na natureza suas próprias projeções imaginárias: entidades, espíritos, deuses, semi-deuses, formando cadeias de religiões – noologias diversas – com suas mitologias, lendas e histórias arquetípicas cheias de ensinamentos e saberes. Era uma maneira de mediar o cosmos em um processo intersubjetivo, tudo o que está lá fora, está aqui dentro. Tudo se conecta em macro-narrativas e todos participamos e partilhamos desta história. A personificação de um regente tripartite – o Criador, o Mantenedor, o Destruidor – como na religião Hindu, por exemplo – é um destes exemplos de tentativa intelectiva de se mediar o universo e suas homeostases em constante círculo-evoluções e disputas internas em prol de um equilíbrio sistêmico. Ao transformar o cosmos em objeto de estudo pela ciência moderna, esta conexão intersubjetiva se perdeu, esvaziou-se, não que esta não nos tenha nos levado também a inúmeras falácias como genocídios de populações devido a atritos entre religiões e crenças, ao contrário. Mas, esta presença intelectiva que permeia tudo e todos parece ter ficado extinta, coisa dos povos arcaicos, como dirá Morin. Entretanto, cabe dizer que Peirce a retoma de maneira muito enfática com o seu Realismo Objetivo.

Assim, ao tentar resolver um problema, acabou indo para um outro extremo. Personificado no: “penso, logo existo” cartesiano, o homem moderno iluminista se afastou das falácias das subjetividades e se centrou nas objetividades. De fato, não houve solução, o cogito acabou se transformando numa grande pedra de tropeço ao homo sapiens no que se refere a maneira como sua bolha interpretativa foi moldada ao encarar o cosmos ao seu redor. Se centralizando no indivíduo, na espécie, deixou de lado outros tantos processos intelectivos sinérgicos complementares, incluindo o próprio planeta Terra como organismo vivo, particionando os saberes em nichos específicos, surdos, mudos e cegos às dinâmicas integrativas e copulativas das complementaridades. A própria ‘revolução verde’ e sua produção em larga escala de alimentos em prol apenas ao sapiens é um exemplo claro disso. Nela, os ecossistemas estão a serviço apenas ao humano, degradando e extinguindo a vida em seu entorno.

O problema ignorado é que todas as complementaridades intelectivas emergentes se conectam.

Por certo, é a retomada dos ciclos intelectivos sinérgicos por todos os ecossistemas no planeta que se torna, talvez, o maior desafio a se encarar neste momento. O homo sapiens terá que reconhecer que não é único a deter a faculdade que o define, ao contrário. Mas, será que ele tem consciência disso?

Creio que já temos um terreno fértil para que esta consciência-emergência venha florescer com a riqueza que lhe é devida. E, esta virá na medida que se contemplar os firmamentos idiossincráticos intelectivos que cercam, moldam e integram todas as espécies do planeta. Será neste momento, de fusão – togetherness –  com outras complementaridades inteligentes, que ouviremos a singularidade-cognitiva que permeia todo o cosmos: a música das esferas, o cântico dos quânticos.

E, tal comunhão terá um tom de milagre, por certo, para que não nos deixemos de nos encantar com as auroras e primaveras que nos rondam.

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