A reinvenção da internet e implicações de uma nova era de regulação digital

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Por Anderson Röhe

Em abril de 2022, EUA e União Europeia (UE) emitiram um comunicado conjunto acerca da “Declaração para o Futuro da Internet”[1]. Documento que não só contém protocolos e regras técnicas, mas também compartilha valores e visões comuns de mundo do que consideram uma “internet global, livre, interoperável, mais aberta, segura e confiável”. Ocasião em que a UE, por intermédio de um pacote de medidas ex ante, isto é, de natureza precaucional ou preventiva, anunciou novos parâmetros para o futuro da governança digital através de iniciativas como o Digital Markets Act (DMA) e Digital Services Act (DSA)[2]. Visando regular tanto o mundo dos negócios, quanto a vida em sociedade no tocante à proteção das liberdades individuais, da livre iniciativa e concorrência na internet.

Aqueles propuseram, então, o compromisso público em defesa de uma rede mundial de computadores única e descentralizada que consagra tanto direitos, quanto regras e deveres típicos de regimes democráticos. Tais como a defesa da liberdade de pensamento, expressão e preservação do estado de direito (rule of law). Expressando, por outro lado, preocupação com o crescente impacto de ciberataques; suposta interferência em processos legislativos e tomadas de decisão relevantes por meio desinformação; monopólio e concentração abusiva do poder econômico; e, sobretudo, com relação ao potencial perigo de repressão política por governos autocráticos que sistematicamente violam direitos humanos e liberdade na internet.

Declaração que é, de fato, legítima e oportuna para o atual momento de extrema polarização política, crise econômica-energética, ascensão do populismo e neonacionalismos pela extrema direita (na Europa, assim como em outras partes do mundo). Mas que, na prática, revela-se não tão neutra e/ou parcial assim. Visto que é declaradamente de natureza política. Ao servir de contramedida do chamado Norte Global ou mundo hegemônico visando manter interoperabilidade, sua soberania digital e autonomia regulatória. Sobretudo a União Europeia, dada a tendência de concentração monopolística do mercado de Inteligência Artificial em dois pólos de influência dominantes [3], diante do acirramento da disputa tecnológica sino-estadunidense [4]. Cujos reflexos mais impactantes não estarão exatamente na China ou nos EUA, mas sobretudo em territórios de terceiros (proxy wars). Como é o caso europeu.

Assim, a “Declaração sobre o Futuro da Internet” – que originalmente visava a ser uma “aliança”, mas logo descartada, por remeter à ideia de uma (contra)reação militar – causa uma certa apreensão. Mormente no intuito de tentar frear o que julga ser concorrência desleal e anticompetitiva de potências emergentes, como Rússia e China, que, juntas, estariam incumbidas de minar a ordem democrática e estabilidade do Ocidente.

Os problemas, portanto, estão no timing (sim, mas por que agora?) e contexto turbulento em que a Declaração está sendo proferida. Isto é, na esteira da comoção pública frente à Guerra na Ucrânia e ameaça russa de se desligar da rede mundial de computadores [5]. Ao reforçar o argumento de que as novas tecnologias digitais de informação e comunicação – como Big Data, Internet das Coisas e Inteligência Artificial – têm o potencial (ambivalente e paradoxal) tanto de promover um mundo mais equilibrado e equitativo (externalidades positivas), quanto também minar a paz, a democracia e o Estado de direito vigentes (externalidades negativas).

O objetivo, então, do ensaio é aferir se esta proposta de regulação digital – como objeto de estudo – é bem intencionada; se serve a seus propósitos originais ou vai mais além, funcionando mais como força de repulsão do que de atração.

A conclusão é no sentido de que vai de encontro ao propósito que visa impedir. Isto é, ao invés de gerar consenso e união global, pode provocar a fragmentação da internet e subsequente exclusão de paísesnão signatários (como é o caso de incluir a Argentina e deixar de fora o Brasil)[6].  Movimento que não é novo, mas que, historicamente, revisita o clássico fenômeno da “balcanização” (Todorova, 2009)[7], ao induzir uma Splinternet (ou “internet balcanizada”).

Isto é, “em vez da única internet global que temos hoje, temos várias redes nacionais ou regionais que não se comunicam e talvez até operem usando tecnologias incompatíveis. Isso significaria o fim da internet como uma única tecnologia de comunicação global”. E “a era de um mundo conectado terminaria”. [8]

E, como resultado, pode inclusive resultar em alianças militares e arranjos político-econômicos ainda mais perigosos e arriscados que tornariam uma eventual “reconexão” praticamente irreversível. Ao incluir, a título de exemplificação, países como Ucrânia e Taiwan, mas não Rússia e China; seus “rivais”’ ou “concorrentes diretos”, respectivamente.

Afinal, ainda não há consenso global se deve haver algum tipo de autorregulação pelas próprias Big Techs (grandes empresas de tecnologia como Google, Amazon e Microsoft que hoje dominam as plataformas digitais), ou mesmo uma intervenção estatal direta no emergente campo da digitalização e datificação [9]. Já que a Declaração vem na contramão do ideal de “Independência do Ciberespaço” por John Perry Barlow (1996)[10]. Assim como há incertezas se as agências, autoridades regulatórias e os instrumentos institucionais hoje disponíveis sobre antitruste e concorrência são (Hovenkamp, 2021)[11] ou não (Lancieri e Zingales, 2021)[12] suficientes para suprir esse hiato ou lacuna legislativa. Ao incorrer nos riscos de sobreposições legislativas (mesmo entre os estados-membros da UE) e de conflito real entre as competências nacionais.


[1] European Commission. UE e parceiros internacionais apresentam uma Declaração sobre o futuro da Internet. Comunicado de Imprensa 28 abr. 2022. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/IP_22_2695.

[2] The Digital Services Act package. Shaping Europe’s digital future. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package

[3] LEE, Kai-Fu. AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order. Mariner Books; 1ª edição, 2018.

[4] LEMOS, Ronaldo. Ciberguerra tem dinâmica própria. ITS Rio, 9 mar. 2022. Disponível em: https://itsrio.org/pt/artigos/ciberguerra-tem-dinamica-propria/

[5] BALL, James. Russia is risking the creation of a “splinternet”— and it could be irreversible. MIT Technology Review. 17 mar. 2022. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2022/03/17/1047352/russia-splinternet-risk/.

[6] GROSSMANN, Luís Osvaldo. Brasil fica fora de declaração em defesa da Internet que reúne 60

Países. Convergência Digital, 29 abr. 2022. Disponível em: https://www.convergenciadigital.com.br/Internet/Brasil-fica-fora-de-declaracao-em-defesa-da-Internet-que-reune-60-paises-60151.html?

[7] TODOROVA, Maria. Imagining the Balkans Oxford University Press. Updated Edition.April 15, 2009.

[8] BALL, James. Russia is risking the creation of a “splinternet”— and it could be irreversible. Op. Cit.

[9] JOHNSON, Khari. Europe Prepares to Rewrite the Rules of the Internet. Wired, 29 out. 2022. Disponível em: https://www.wired.com/story/europe-dma-prepares-to-rewrite-the-rules-of-the-internet/.

[10] BARLOW, John Perry. Declaração de Independência do Ciberespaço. 8 fev. 1996. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/ciber/textos/barlow.htm.

[11] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust and Platform Monopoly. Yale Law Journal, June, 2021. n.8, vol. 130. Disponível em: https://www.yalelawjournal.org/article/antitrust-and-platform-monopoly.

[12] LANCIERI, Filippo; ZINGALES, Luigi. Economic Regulation After George Stigler. Stigler Center, April 14, 2021. Disponível em: https://www.promarket.org/2021/04/14/economic-regulation-after-george-stigler/.